Texto por Stephanie Souza

É seguro dizer que a cena de hardcore nova-iorquina dos anos 90 não foi a mesma depois do Gorilla Biscuits. A banda, criada em 1986, por Anthony ‘Civ’ Civarrelli (vocal) e Artur Smilios (baixo) se tornou grande referência mundial, principalmente pela agressividade no som e suas mensagens, que permeiam desde o veganismo e o movimento straight edge até letras mais simples com uma pitada de humor e positividade. Além de Civ e Smilios, a formação da banda conta com Luke Abbey (baterista), Charlie Garriga (guitarra) e Walter Schreifels, lendário guitarrista que também fez parte de outra grande banda do cenário, o Youth of Today, e também membro formador do Quicksand.

Mesmo com apenas dois álbuns de estúdio lançados em seus quase 40 anos de vida, as músicas do Gorilla Biscuits foram passadas de geração em geração, deixando um longo legado de representatividade excepcional. E agora, em 2024, a banda retornou ao Brasil 10 anos após sua última apresentação por aqui, em 2014. 

O show aconteceu na última sexta, 27, no Fabrique Club, na Barra Funda, em São Paulo. Numa espécie de mini festival, tivemos ainda outras cinco bandas antes da atração principal. À beira do início das eleições municipais, é importante mencionar que a noite foi marcada por muitas manifestações políticas, afinal, hardcore é político

A abertura da noite ficou por conta das bandas Freak Fur e Strong Reaction, que, por tocarem mais cedo, acabaram se apresentando para uma casa ainda vazia. Mas isso não foi problema: os shows foram robustos e mais do que competentes. 

Depois foi a vez do Good Intentions, um dos maiores nomes do hardcore straight edge do país. A banda, que existe desde 1999, decidiu dar adeus aos palcos esse ano, fazendo seu show de despedida nesta sexta-feira. A apresentação foi intensa e contou com participação ativa do público, que aquecia a casa em crowd surfs, rodas e muito two-step (também conhecido como hardcore dancing). 

Paura, veteranos de cena, subiram ao palco com muitos gritos e aplausos. Aqui o público já se via completamente entregue ao grande transe do hardcore. Corpos suados se empurravam em uma grande roda enquanto o vocalista, Fábio (aniversariante do dia, diga-se de passagem) conduzia o show com muita desenvoltura. Em discurso, aproveitou para reforçar a importância da valorização da música nacional e deixou um recado bastante provocante à direita brasileira. 

E então foi a vez do Values Here, nova banda de John Porcell, guitarrista do Shelter e do Youth of Today, com a vocalista espanhola Chui. Vale crítica, foi a única banda da noite com uma mulher em sua formação. A banda de punk hardcore adiciona um toque pop em seu som, o que (provavelmente) foi a causa do distanciamento entre os presentes. A roda diminuiu e em certo momento até deixou de existir, e só voltou a dar as caras quando apresentaram um cover de “7 Seconds”. Ainda assim, a banda fez apresentação consistente apesar da baixa aderência. 

Ao som dos trompetes clássicos de “New Direction”, as luzes se apagavam: Gorilla Biscuits finalmente tomava o palco do Fabrique. E o que se deu em seguida foi um ritual de expurgo em forma de empurrões, crowd surfs insanos e muitos gritos. 10 anos de espera unificavam os velhos e também novos fãs de GB e, assim, o público se tornou uma coisa só em questão de segundos. Durante os 50 minutos de set, não houve espaço pessoal e muito menos calmaria, a noite tomava formato histórico e se tornava exemplo empírico da potência e intensidade do hardcore. 

A setlist percorreu os dois únicos álbuns de estúdio da banda, além de alguns covers, como “Minor Threat” da banda Minor Threat, e “As One”, do Warzone. Civ aproveitou pequenas pausas entre as músicas para discorrer sobre veganismo e a necessidade de se unir como cena, não havendo espaço para diferenciação entre gênero, cor e religião. 

O destaque fica para Smilios que conduziu o show com maestria em suas linhas de baixo marcantes. Civ também é um show à parte, o vocalista tem uma energia de dar inveja e é um frontman nato. Em “Start Today”, última música do show, parte do público invadiu o palco em grande delírio coletivo. É o hardcore em seu estado mais primal. 

A música cria significados para a existência através de mensagens e representações situadas a partir do momento histórico em que estão sendo criadas, sendo assim, uma prática cultural em permanente construção. Em uma noite repleta de hardcore, tanto brasileiro quanto internacional, é interessante perceber que tais músicas, novas ou não, ainda colocam em circulação representações que permitem às pessoas verbalizarem seus conflitos, escolhas e reivindicações e ainda oferecem sensação de pertencimento. 

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