Por Leandro Abrantes e Luis Fernando Ribeiro
Todo misticismo que envolve as incontáveis culturas e lendas dentro de um país continental como o Brasil servem de referência para boas histórias contadas ao redor de uma fogueira, em livros de folhas desgastadas pelo tempo ou – por que não – em discos de heavy metal. Lançado no dia 15 de janeiro deste fatídico ano de 2020 de maneira independente, Boiuna, do Vocifer, traz consigo o entrosamento de uma banda com quase seis anos de estrada e a experiência de ter tocado ao lado de grandes nomes como Noturnall com Mike Portnoy (ex-Dream Theater) e Edu Falaschi (ex-Angra, Almah) e gravado com artistas renomados como o tecladista Fábio Laguna (Angra, Hangar, Freakeys) e o produtor Thiago Bianchi (ex-Shaman). Carregando os ecos da riquíssima cultura de seu povo em cada canção, os tocantinenses da Vocifer nos brindam com um ousado álbum conceitual de estreia, ao som de um sombrio e pesado heavy/power metal, que forma o clima perfeito para contar-nos o mito da senhora-das-águas, a cobra Boiuna e outras lendas do folclore amazônico.
O disco abre com “Release the Night” e sua introdução de uma melodia sutil e elegante e com linhas vocais que nos remetem a uma calmaria inquieta, como aquela que antecede uma tempestade anunciada. A bateria e o baixo retumbantes como trovões e os riffs cortantes rompem a melodia com uma urgência grave, apresentando todos os músicos e a identidade da banda logo de cara, mostrando que eles buscaram neles mesmos os recursos necessários para dar o clima que precisavam para contar essa história.
Apesar de promover uma história do folclore brasileiro, não foi preciso buscar na música folk elementos para criar a identidade da banda. A sonoridade épica e a técnica dos músicos criam um ambiente dramático o suficiente para dar suporte a profundidade das letras, conduzindo a canção de maneira tensa até o refrão ao mesmo tempo estrondoso e enérgico, mas denso e soturno como a escuridão dos céus que se fecham cantada no verso. Após o refrão a banda toda pára e o dedilhado de Lucas Lago no baixo introduz de maneira magistral o instrumental, conduzindo individualmente cada um dos músicos para o solo impecável de Pedro Scheid, carregado de uma emoção sombria mas intensa, com uma escala muito bem escolhida e segurando a última nota em tom de suspense, chamando novamente a ponte para o refrão, que se repete ainda mais forte e épico do que antes, como que num rompimento com a primeira parte da canção e abrindo caminho para a história que se desenvolverá no restante do disco.
O poderoso e encorpado riff que abre “Lady Moon” é cheio de um suspense e de uma expectativa tensa, reforçados pela entrada estrondosa do baixo e da bateria, que formam uma verdadeira parede sonora para as guitarras saírem para a melodia e voltarem ao riff principal com naturalidade, conduzindo a música de maneira que todos os instrumentos seguem um mesmo caminho, mas eventualmente se afastam para trazer elementos próprios e enriquecer a grandiosidade da composição. O baixo faz belos e muito bem colocados fraseados enquanto a bateria segue o riff principal. Depois é a vez da bateria buscar seus tempos mais quebrados e o baterista Alex Christopher explorar com sua técnica apurada todo o seu instrumento. Tudo isso constrói uma atmosfera excelente para a entrada da letra, onde os músicos seguem rodando essa engrenagem sonora enquanto João Noleto interpreta a canção com a maestria de um verdadeiro storyteller, transmitindo a necessidade de esperança de um povo com o medo das trevas de uma noite tão escura. O refrão fica na cabeça de imediato e soa como um pedido de rendição ao bradar “Criaturas da noite, voem comigo pra longe daqui, para onde o mal não pode me atingir”. A guitarra acompanha o vocal como uma segunda voz, ganhando um tom ainda mais épico quando acompanhados pelos backing vocals quase angelicais. A segunda parte segue tensa, carregada de sentimentos pesados como ódio e a inveja e culmina, após o refrão, numa nova roupagem, causada especialmente pela límpida melodia de guitarra, transformando toda a angústia de outrora em esperança quando a personagem “voou para descansar em pedaços, longe da tristeza de ser livre. Ela voou para longe do mal, para o alto com suas asas de liberdade, acima das nuvens” tornando-se a Lady Moon, aquela que trás esperança em meio a escuridão “Iluminando o caminho para você”. O solo de Pedro Scheid surge vibrante, desfilando técnica e execução inteligentes, com arpejos e tappings muito bem executados, irradiando luz e esperança em meio a escuridão criados pela letra e pelo clima funesto das partes mais sombrias da canção, encaminhando a música para seu término conduzida por uma cozinha sólida e intrincada.
“The Curse of River’s Lord” é dividida em duas partes. A primeira é um pouco mais direta do que as músicas anteriores, iniciando em um riff que convida a marchar e que nos acompanha até o final da música, seguindo por uma virtuosa intervenção do baixo e cortado por melodias cativantes, que estimulam a bravura de um povo diante da batalha iminente, forjadas na mesma escola de bandas como Helloween e Gamma Ray. João Noleto surge temeroso e cauteloso com a ameaça da abominação às margens do rio, protagonista dessa história, mas logo se torna desafiador como um guerreiro incitando sua tribo a combater Boiuna, bradando “Agora vamos ver quem é o dono da noite. Nós vamos matar você”. O refrão vem poderoso, envolvente e carregado da confiança de guerreiros que lutarão até a morte se for preciso para livrar seu povo das trevas, com um evidente clima de batalha estimulado pelo ritmo frenético do pedal duplo de Alex Christopher, onde até a interpretação da canção testa o fôlego de Noleto, apoiado por majestosos backing vocals, sempre muito bem utilizados. O trecho pós refrão é grandioso, passeando por uma sonoridade à la Iron Maiden, indo do “Brave New World” no solo ao “Powerslave” quando guitarras e baixo se juntam para uma belíssima melodia. Após um novo refrão, a faixa é encerrada de maneira um pouco abrupta, carecendo de uma transição mais episódica para a segunda parte. A segunda parte surge gélida e melancólica no formato impreterível de uma lindíssima balada nos moldes do Blind Guardian em seus discos mais recentes, conduzida por um límpido dedilhar do violão, pelos teclados de Fábio Laguna e pelos lamentos de um derrotado guerreiro que chora lágrimas de sangue ao silêncio sepulcral da carnificina à beira do rio, admitindo “que o senhor do rio é dono da noite”. Aos poucos o tom melancólico vai dando espaço para o tormento de memórias que nunca vão embora e a canção irrompe explosiva em um refrão comovente e um solo carregado de emoção, digno da magnitude de uma balada épica, onde Pedro Scheid transmite sentimentos de dor, perda e reparação que somente um grande compositor seria capaz de traduzir em canção, tornando esta não a melhor, mas a mais bela composição de todo o disco. A infinitude do final da canção em fade out nos leva a acreditar que a maldição do senhor do rio jamais irá acabar.
“Primal Clash” é a canção mais completa e, consequentemente, a mais longa e complexa do álbum, passando do heavy ao power, de momentos que beiram thrash à outros regados a música brasileira. A letra também é a mais longa e de um caráter tão narrativo que o refrão quase passa despercebido em meio as estrofes. A música começa com uma pegada bastante melódica à la Dragonforce, mas logo se transforma bebendo na brasilidade do Angra, sem tentar ser um novo Holy Land, conduzida pelos tempos quebrados de Alex Christopher, que não tem medo de marchar no ride e nos tons ao ritmo do baião e do metal progressivo e que, ao lado do baixo galopante, forma uma cozinha muito técnica e ainda assim muito orgânica. A coletividade da composição dá espaço para todos brilharem, demonstrando o entrosamento e a generosidade dos músicos. A música tem dois momentos bem distintos, um extremamente pesado, onde os riffs encorpados e as intervenções melódicas de Pedro Scheid ditam a urgência e a ferocidade das forças irmãs e primitivas que se chocam a beira do rio. O segundo momento inicia com um solo carregado de mistério e misticismo, seguido de um mergulho na profundidade criativa da banda, em um trecho absolutamente sutil conduzido pela belíssima linha do consagrado tecladista Fábio Laguna (Angra, Hangar, entre outros) e pela sempre deleitável interpretação de João Noleto, ao falar de um amor que preenche um coração vazio e de uma alma mais brilhante que ouro, fadada a pagar pelos pecados de um irmão gêmeo maligno. Lentamente a banda toda é reintroduzida, primeiro por um belo floreio do baixo, em seguida pelos coros sempre harmoniosos de vozes, depois pelo retumbar da bateria e, por fim, pelos riffs intrincados que devolvem o peso épico original da canção, dignos do combate narrado pelo refrão, onde ambos os irmãos lutam sabendo que são partes de uma mesma maldição.
A segunda metade do disco começa com “Up On The Hills”, que apela para uma melodia absolutamente grudenta e açucarada e uma bateria marcando tempo na caixa, numa pegada que mescla elementos de power metal e hard rock, algo que o Edguy e o Axel Rudi Pell fazem com maestria ou que o Helloween fez em “The Time Of The Oath”, para situar o leitor. O baixo de Lucas Lago surge sempre rosnante e ousado, atropelando as melodias com seu peso sempre avassalador e ao lado da intervenções precisas da bateria, criam o clima de tensão – que certamente será acompanhado de palmas em apresentações ao vivo – e emergência para uma narrador angustiado em sua caçada. Vale destacar nesse ponto a riqueza das narrativas contadas pelas letras das canções, nos colocando dentro da história como em um bom livro de fantasia ou em uma partida de RPG. Na primeira estrofe dessa canção, por exemplo, onde o narrador nos relata aflito “Devo me apressar. Devo concluir a caçada. Eu devo me reunir com os meus, antes do anoitecer. A vila está bem à frente, quase chegando lá, eu posso sentir a brisa fresca e a magia no ar”, é possível se sentir parte daquilo, como que dentro da história que está sendo contada. O conceito do disco, se mal aproveitado, poderia se torná-lo burocrático e enfadonho, mas o caráter metafórico e interpretativo, além da qualidade das letras faz com que, apesar de uma única história estar sendo contada do início ao fim, as músicas também funcionem muito bem individualmente. O refrão e o solo são os pontos altos em “Up On The Hills”, soando absolutamente grudentos e com uma energia vibrante e transcendente, que te levam junto com o personagem de coração ardente acima das colinas. A atuação de Alex Christopher também é destaque nessa faixa, que desfila todo seu repertório em mudanças constantes de tempo e um pedal duplo voraz e muito bem executado.
“Lord Of The Rain” começa com um riff que vai de “Storms” do Torture Squad à “Seek and Destroy” do Metallica, mostrando uma banda com uma amplitude criativa gigantesca ao buscar elementos tão distintos ao seu som original. Apesar disso, alguns elementos dessa canção fazem ela ter altos e baixos, destacando-se menos que as demais faixas do disco. Não se engane, não estamos falando de uma canção ruim, longe disso. Tudo está ali, um ótimo refrão, o peso cadenciado e denso dos riffs, uma melodia cativante, um solo de bom gosto e cheio de efeitos, uma bela letra e a condução sempre criativa e competente da cozinha. Uma boa canção, mas que pode passar um pouco despercebida em meio a tantas músicas excelentes.
Na sequência, “War Of Vendetta” busca no thrash seu riff poderosíssimo, um dos mais pesados do disco, incitando a marcha para a guerra. As linhas de guitarra sobrepostas criam a tensão necessária para a batalha iminente. João Noleto explora novas facetas de seu vocal, alcançando notas belíssimas em uma interpretação sinistra da letra, ao falar sobre antropofagia e as guerras onde vencedores comem os perdedores para absorver suas virtudes. A fórmula bem estabelecida – mas nunca manjada – pela banda de conduzir suas canções demonstra uma maturidade que talvez os permita alçar vôos maiores, chegando ao patamar de grandes bandas do gênero, no que depender da competência artística dos músicos. Apesar de ser uma canção mais direta, a oitava faixa do disco tem todos os elementos que nos encantaram até agora na sonoridade da banda, a mescla peso com as melodias das guitarras e da densa parede sonora formada pela firmeza e competência da cozinha, que não se presta apenas a servir de base para as canções. As pontes para o refrão e para o solo apresentam a banda com um primor técnico elevadíssimo e o solo em si é tão bem construído que praticamente continua a narrativa da batalha. O peso belicoso do final da canção encerra de maneira monumental a canção mais pesada do álbum.
A posição de “Hummingbird” – música que carrega o posto de single do disco – na disposição das faixas do álbum, mostra uma banda com uma preocupação artística muito maior que a comercial, mas a escolha se mostra acertada, uma vez que a faixa carrega todos os elementos que formaram os alicerces desse belíssimo debut. Vale destacar aqui também a qualidade da produção do disco, realizada por Thiago Bianchi (ex-Shaman), onde todos os instrumentos estão bem “na cara” e nenhum músico passa despercebido em nenhum momento. Essa é uma faixa “do time”, onde todos jogam pelo coletivo mais do que nunca, entregando o nível mais elevado que possuem como músicos, fazendo dessa a música mais elaborada tecnicamente e a composição mais primorosa do álbum. A música começa com uma bateria que parecia ir para os lados de “Power” do Helloween, mas envereda por caminhos mais tribais e totalmente distintos do metal melódico, apostando no peso do instrumental e numa interpretação mais sóbria do vocalista, como um mestre bardo contando histórias ao redor de uma fogueira, lembrando em alguns momentos mais falados o trabalho de Bruno Maia, do Tuatha de Danann. As camadas de guitarra, que em estúdio foram todas feitas pelo então único guitarrista da banda Pedro Scheid, devem funcionar ainda melhor ao vivo com a presença do agora segundo guitarrista da banda, Gustavo Oliveira, que com certeza deverá somar forças na composição de um segundo disco de estúdio ainda mais poderoso. Vale destacar também que após a gravação do disco, o baterista Alex Christopher foi substituído pelo competentíssimo Raphael Carvalho, indicado pelo próprio Alex para o posto, assumindo as baquetas a partir da turnê de lançamento do disco. O solo é absolutamente bem executado tanto por Pedro, quanto pela base de baixo de Lucas, que cria frases que conversam lindamente com a guitarra. A letra de “Hummingbird”, talvez por ser o single, pode ser interpretada de maneira mais isolada do restante do disco, guiada de maneira belíssima e poética pelas asas de um raro colibri de asas flamejantes por noites primaveris, onde o refrão clama por orientação ao implorar “Mostre-me o caminho, onde eu deveria ir, com sua luz interminável, Colibri” e sua condução, especialmente com a bateria intrincada e atravessada que parece ir na contramão da canção, casam perfeitamente com a incerteza do caminho a ser tomado.
A derradeira “Used To Be” encerra a audição de maneira digna, mas abaixo do esperado, carecendo da criatividade e espontaneidade do restante do disco e deixando uma lacuna no final da história, como aqueles filmes grandiosos com o final em aberto. Trata-se de uma bela canção, de composição bastante intimista, mas que bebe em algumas fontes bastante claras, como em “Hunters and Pray” do Angra, com uma raiz carregada de brasilidade, gerando identificação imediata aos fãs do Brasil e espalhando nossa cultura para possíveis fãs fora do país.
Boiuna é um disco carregado de emoção e bom gosto, para ser consumido como um todo e em doses contínuas, onde a cada nova audição, novas nuances e novos elementos podem ser observados. A audição do álbum com as letras à mão é fundamental para uma experiência ainda mais imersiva.
A qualidade deste registro deixa a banda com uma difícil mas agradável missão de compor um próximo disco de estúdio – que sinceramente deveria ser novamente conceitual, dada a assertividade da banda nesse formato – ainda melhor e os fãs, e já nos incluímos entre eles, com a expectativa pelo sucessor desse excelente lançamento do sempre riquíssimo cenário metálico brasileiro, que nasceu com grandes chances de levar o nome do Brasil para o mundo.
Nota Luis Fernando: 9,2
Nota Leandro: 9,1