Não há dúvidas que muita gente gostaria de simplesmente apagar o ano de 2020 da memória. Arrows, quinto álbum de estúdio do Red Fang, promete fazer isso pela banda – ao menos musicalmente, como acredita Bryan Giles, já que o projeto foi finalizado em outubro do ano anterior e não sofreu mudanças quando engavetado.

“Não há músicas sobre quarentena ou nada do tipo, apenas rock n’ roll”, explica sobre o disco. “Mesmo se eu pudesse, não mudaria nada. É um momento no tempo e estou animado porque capturamos isso”. Com cigarro e cerveja em mãos, o guitarrista está do lado de fora de casa durante a chamada de vídeo com o Wikimetal, no que parece ser um retrato mais realista do período de isolamento do que o frenético clipe da faixa-título do álbum.

O projeto dá continuidade a elementos bem sucedidos na discografia do Red Fang: descontração sem perder o profissionalismo, vocais agressivos e instrumentais pesados sem perder o groove, além de parcerias que já se provaram frutíferas em trabalhos anteriores, a começar pelo produtor Chris Funk, de Murder the Mountains (2011).

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No campo dos clipes insanos, Whitey McConnaughy, diretor de “Wires”, está de volta com ideias ainda mais absurdas em “Arrows”. Enquanto a equipe de produção teve todo o trabalho de preparação, a banda simplesmente precisou “chegar e cortar coisas com uma espada”. “Eu pesquisei no YouTube sobre como usar uma espada, mas não acho que consegui nenhuma informação útil”, ri o músico. “Não cortei minha mão fora, então acho que fiz um ótimo trabalho”.

Quem conhece a banda por algum clipe insano pode não perceber a seriedade do trabalho no estúdio ou criar falsas expectativas sobre os shows do grupo. Se alguém espera encontrar “roupas engraçadas e animais de pelúcia” no palco, ao estilo do clipe de “Why”, certamente vai se surpreender. “Nós tentamos oferecer a experiência musical mais intensa possível e, honestamente, o conteúdo da nossa música é qualquer coisa, menos alegre”, avisa Giles. “Existe uma dicotomia, mas até agora, as pessoas estão de boa com isso. Às vezes existe um choque, espero que seja uma surpresa positiva”.

Em “Why”, último single divulgado antes do lançamento do álbum, a banda retrata a temática do vício com seriedade, “mesmo que seja um urso enorme viciado em pizza” na narrativa. “São três minutos difíceis. Tem uns 30 segundos de celebração e tudo vai ladeira abaixo. Não é o clipe mais animador que já fizemos”, admite. “Nossa intenção não era minimizar o vício em drogas, eu já lidei com isso no passado”.

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De acordo com a própria experiência, o guitarrista e cantor conseguiu passar o sentimento de que não há alternativa ou salvação para o viciado. “Eu sei que não parece possível parar, uma vida limpa não parece real. É possível, mas conheço a mentalidade e o sentimento de que não há saída, essa é a única forma de viver”, conta. “Não tentamos fazer pouco caso. E não queria um final feliz, acho que existem mais finais trágicos do que felizes para o vício em drogas, queria representar esse problema da humanidade”.

Na capa do álbum, Red Fang recrutou mais uma vez Orion Landau para encontrar uma imagem “icônica, forte, que se destaca” e causar reconhecimento imediato no público, Sobre o fundo quase neon, em representação das áreas verdes da região de Portland, cidade natal da banda, dezenas de olhos observam e choram, uma analogia ao escrutínio constante no convívio social, especialmente na era do compartilhamento em tempo real.

Mas os olhos atentos não apenas observam. A tão discutida cultura do cancelamento transformou o mundo em um lugar louco, na visão do músico. “São tempos muito, muito estranhos para ser gente. Todo mundo surtou, cara. A direita está surtada, a esquerda está surtada, nada faz sentido algum para mim”, declara de forma enérgica. “Esquerdismo extremo é tão ruim quanto a extrema direita, é intolerância”.

Red Fang - 'Arrows'
Red Fang – ‘Arrows’. Crédito: Divulgação

A decisão do espólio da editora de Dr. Seuss para encerrar a publicação de alguns livros por conteúdo racista é exemplo que causa certa indignação em Bryan. O autor estadunidense tem forte influência na cultura com personagens como Grinch e se tornou centro de forte discussão após retirar seis títulos de circulação, debate semelhante ao do brasileiro Monteiro Lobato.

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“Nós não somos idiotas, eu não acho que crianças são idiotas. Não acho que uma criança que lê Dr. Seuss se torna racista, não é um livro infantil que causa racismo, são os pais que fazem isso. Que tal cancelar os pais?”, sugere. “É ridículo. Sou uma pessoa muito liberal, mas é difícil ver dessa perspectiva rasa. É uma guerra cultural. Em guerras, é necessário pensamento objetivo, mas ninguém está pensando direito agora!”

Bryan Giles, do Red Fang
Bryan Giles, do Red Fang. Crédito: Reprodução/Facebook

Inspirado pela música “Funeral Coach” e a confusão com o termo, que se refere a carros de cortejo fúnebres (não, ainda não existem coaches especializados em funerais), Giles reconhece que as pessoas podem precisar de ajuda profissional para retomar interações sociais – mais do que nunca. “Agora é pior, a estranheza está cada vez maior. Mas vamos dar um jeito”, diz.

Com os primeiros shows em um ano e meio marcados para outubro, ele acredita que haverá um estranhamento quando subir ao palco, mas está animado pela possibilidade de viver no “mundo real, com nossas identidades reais” novamente.

E a solução para todas as divergências, polarização e dificuldade de comunicação? “Precisamos estar juntos. Muito pode ser resolvido se todo mundo sair e assistir a um show junto”, aposta o guitarrista. Agora só nos resta esperar pelo poder reconciliador dos shows e o retorno de Red Fang ao Brasil em um futuro incerto.

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