É um evento diferente do que estava acostumado – nenhum outro festival de Metal se compara minimamente ao Roadburn.”

Confira mais um texto escrito por um de nossos WikiBrothers:

por Thiago Martins

Roadburn, Parte 1: Um festival sem paralelo na música pesada

O Roadburn está longe de ser o seu típico festival de verão de Heavy Metal. Já começa por acontecer em abril, início da primavera que nem bem começou, então as temperaturas altas ainda são mais desejos estampados nas coleções de bermudas e vestidos nas vitrines do que uma realidade a ser sentida. Por isso, não é de se espantar o fato de o Roadburn acontecer em local fechado.

A tradicional casa de shows 013, em Tilburg, é a principal sede do evento, na qual se localizam três dos palcos utilizados – além do principal, o Green Room e o Stage 01. O palco principal do 013 é a casa de shows que falta a São Paulo. Tamanho médio, comporta pouco mais de duas mil pessoas, com uma estrutura que lembra o finado paulistano Via Funchal e o Citibank Hall carioca, pelos degraus na pista, além de um farto mezanino.

Em compensação, o Green Room e o Stage 01 são quentes e espremidos, com reduzidíssima capacidade (350 e 150 pessoas, respectivamente) e difícil acesso. Ou seja, quando se tratava de shows aguardados, para conseguir entrar já era um sofrimento; uma boa visão do palco, então, exigia se deslocar com certa antecedência.

Além desses três palcos, há o Het Patronaat, um palco improvisado no saguão superior ao anexo de igreja antiga situada na mesma rua do 013, e que se transformou no palco secundário do Roadburn. Suportando 600 pessoas, sem um sistema adequado de ventilação e cercado por vitrais religiosos, também exigia um belo esforço e antecipação para se acompanhar as concorridas apresentações nele ocorridas.

À frente do 013, há o V039, a casa utilizada pelo Roadburn para apresentação de filmes e seminários, organizados pela revista inglesa Iron Fist, no subsolo e onde se dava a venda de merchandising na sala superior, bem como a loja de discos “Exile from Mainstream”, um paraíso para colecionadores de vinil. Por fim, alguns poucos shows aconteceram no Cul de Sac, um pequeno bar localizado na agitada rua do burburinho da cidade que dá acesso ao 013.

Essa integração entre cidade e festival é um dos pontos mais legais do Roadburn. Como a rua entre o 013 e o Het Patronaat fica entre o acesso de um grande estacionamento da área central de Tilburg, uma concorrida área de bares e seu centro comercial e histórico, era normal o encontro entre os frequentadores do festival e pessoas comuns, turistas ou não. Sem quaisquer conflitos.

Um dos principais pontos a se destacar do Roadburn é ele não ser um festival puramente musical. Como notado anteriormente, o V039 hospedou um cinema em seu subsolo exibindo ora filmes psicodélicos, ora shows, ora documentários. Todos os palcos possuíam no fundo telas com equipamento para projeções de vídeos durante as apresentações. No palco principal, houve a estreia do curta de animação “Outside the Great Circle”, do artista romeno Costin Chioreanu, também exibido no Het Patronaat.

Sem contar a enorme quantidade de pôsteres diferentes do festival colocada pelas paredes de todas as casas, houve ainda uma exposição de arte de Arma van Rijsbergen no saguão inferior do Het Patronaat e uma outra, maior, focada nos trabalhos de John Baizley, do Baroness, que ilustrou capas de discos de diversos artistas e fica aberta numa academia de artes de Tilburg até junho.

A oferta de comida e bebida do festival é boa, a um preço justo. Um copo pequeno de cerveja custou 2,50 euros (5 euros, o pint), com bares em diversos pontos, enquanto as comidas variavam entre 2,50 e 5 euros. Tudo era pago na moeda do festival, que podia ser comprada em várias máquinas nos corredores do 013. Exceto ocasionalmente na tenda de comida em frente ao 013, as filas inexistiram.

No saguão inferior do Het Patronaat, além da exposição de arte, havia um belo restaurante, o Dudok, com um cardápio mais incrementado, não os lanches típicos de festival. Obviamente, como a permissão para o acesso e saída das casas se dava através de uma pulseira (sem qualquer confusão ou perda de tempo, pois nem havia uma mínima revista de mochilas e sacolas), nada impedia dar um pulo na rua dos bares ao lado.

Quer dizer, nada, exceto o tempo. Pois, se todos esses elementos são importantes aditivos para transformar o Roadburn em uma experiência inesquecível, o principal continua sendo a sua vasta e específica oferta musical. Focada nas bandas mais vanguardistas e desafiadoras da música pesada, seu cast está longe da média de outros festivais de Metal. Nele, muitos grupos fazem shows exclusivos em palcos europeus, suas reuniões ou mesmo estreias.

Em outras palavras, se toda a estrutura do Roadburn faz dele um evento único na música pesada em todo o mundo, sua seleção musical não fica por menos. Mas, dela, falaremos na próxima parte.

Roadburn, Parte 2: Nova e velha geração dão o tom do primeiro dia do festival

Ao pé da letra, o Roadburn Festival dura de quinta a sábado. Mas, como quando a bebedeira é boa sempre tem uma saideira, foi criado o Afterburner, um quarto dia com menos atrações, uma espécie de transição gradual à realidade.
E, na noite quarta-feira, ainda ocorre o Hard Rock Hideout, uma espécie de “esquenta” no Cul de Sac, um típico boteco/casa de shows na rua principal dos bares de Tilburg.

Se toda a estrutura do Roadburn faz dele um evento único na música pesada em todo o mundo, sua seleção musical não fica por menos.”

Em 2013, os alemães do Attic expuseram seu power Metal superlotado de influências do Mercyful Fate – a começar pelo vocal copiado descaradamente de King Diamond –, enquanto os belgas do Bliksem misturaram, ainda que de forma não muito orgânica, vários elementos viajantes do Prog a um som mais agressivo calcado em Thrash Metal.

Nenhuma apresentação indispensável, apesar de agradáveis, porém, mais do que acompanhar as bandas no minúsculo palco do Cul de Sac, as pessoas pareciam interessadas em tomar aquela cerveja real encontrando pessoalmente seus amigos virtuais, além de celebrar as facilidades proporcionadas pela política liberal holandesa, uma constante nos dias subsequentes.

Na quinta-feira, porém, a maratona começou. No palco principal, a largada foi dada pela exibição da animação “Outside the Black Circle”, do artista romeno multifacetado Costin Chioreanu, com envolvimento musical de gente do calibre de Attila Csihar, membro do Gravetemple, além de vocalista do Mayhem no clássico De Mysteriis Dom Sathanas, e Mirai Kavashima, do Sigh, ambos que se apresentariam no festival.

Logo em seguida, os norte-americanos do Pallbearer iniciaram os trabalho no palco principal do 013. O principal expoente da nova safra de Doom Metal, no entanto, não pareceu tão à vontade em um local grande e não foi das bandas mais animadas do dia, numa apresentação um pouco fria e bem tensa, apesar de execução quase perfeita das músicas de seu fenomenal trabalho de estreia Sorrow and Extinction, exceto pelos vocais de Brett Campbell não chegarem com tanta força nos tons mais altos do disco.

Uma pequena corrida ao Het Patronaat e pude conferir, bem espremido, os primeiros belíssimos quinze minutos do show do grupo de Chicago, The Atlas Moth. Seu Blackened-Doom psicodélico, ou seja lá qual estilo eles toquem, era cativante e horripilante na medida certa. Mas, como quem se apresentaria em breve no palco principal era o Penance, abortei depois de duas músicas.

Vinda da velha guarda do Doom norte-americano, o Penance, com a formação clássica do disco Parallel Corners, de 1994, se apresentava na Europa pela primeira vez em vinte anos, com Lee Smith nos vocais. Tocando aquele som extremamente calcado em Black Sabbath e Pentagram, numa encruzilhada entre proto-Metal e o Doom, os americanos entretiveram numa marcante apresentação, com destaque para a pesadíssima “Misgivings”.

Na correria, voltei ao Het Patronaat para conferir outra banda da nova safra norte-americana, o Royal Thunder. Comandada pela excepcional vocalista e baixista Mlny Parsonz, cuja potência vocal é invejável, o som do trio fica naquela transição entre o Doom Metal e o occult Rock, de andamento meio lento, cheio de elementos setentistas, riffs marcantes em profusão a solos e instrumental beirando o psicodélico, perfeitamente executados para uma pista superlotada e hiperaquecida. Destaque para as eloquentes “Blue” e “Black Water Vision”, reproduzidas com toda a grandeza no palco num dos melhores shows do primeiro dia.

Continuando a correria de um palco para o outro, tive minha entrada ao Green Room negada e acompanhar do lado de fora a última música de um aparentemente agitado show de Pilgrim, outra das bandas da nova safra de Doom Metal norte-americana, com um som tradicional muito calcado em Candlemass e Solitude Aeturnus.
Fui, então, ver os quinze minutos finais no palco principal da viagem sonora produzida pelo Gravetemple, uma espécie de banda paralela ao Sunn O))), com Attila Csihar e Stephen O’Malley, recheada de ruídos e vocais bizarros, gerando um clima soturno e tenso.

Na sequência, era a vez de um dos headliners do primeiro dia, o High on Fire, com um pouco de atraso, executar seu grandioso disco de estreia na íntegra, The Art of Self Defense. Quando o mítico guitarrista Matt Pike (também do Sleep) subiu ao palco expondo sua volumosa barriga na fria primavera holandesa, não foi necessário nem terminar “Baghdad”, primeira música do show, para saber que seria uma apresentação bem quente.

Naquela mania besta de correria para ver tudo, imaginando o final de um vibrante show com as últimas reverberações de “Master of Fists”, corri ao Het Patronaat para ver Nate Hall, Katie Jones e John Baizley a fim de dar um certo refresco sonoro aos meus ouvidos. Por isso, acabei perdendo a execução das faixas bônus do relançamento do primeiro álbum do High on Fire, notadamente o cover fabuloso de “The Usurper”, do Celtic Frost. Nem dá para dizer que vai ficar para a próxima…

No Het Patronaat, no entanto, o clima mais relaxado tomou conta do show, com exibições belíssimas de várias músicas em formato semi-acústico de Townes Van Zandt. Mas o destaque foi quando Baizley assumiu a frente do palco para executar emocionantes versões de “Steel that Sleeps the Eye”, “Cocainium” e “Eula”, do Baroness, pela primeira vez num palco europeu desde o acidente que quase matou a banda em agosto do ano passado.

Hora de voltar ao palco principal para o show do Primordial. Aqui, cabe divagar um pouco sobre o público do Roadburn. O som do grupo irlandês é uma mistura de Black Metal com uma certa pitada épica e vários elementos da cultura irlandesa. Mas, a colocação deles como headliners do festival, digamos, não pegou muito bem entre seus frequentadores usuais.

Assim, quando cheguei no palco principal, notei que, diferentemente do High on Fire, onde acreditava não caber mais nenhuma outra alma (descobri estar errado no dia seguinte), tanto o mezanino quanto a pista estavam longe de lotar. Alan “Nemtheanga” Averill, vocalista do Primordial, é daqueles frontmen incendiadores de plateia, mas o público, exceto pelos fãs da banda, parecia alheio à coisa toda.

Não que o público do Roadburn se qualifique por ser dos mais animados. Via de regra, suas respostas não vão muito além de chacoalhar a cabeça e jogar os punhos ao ar. Quando muito, um air-guitar ou acompanhar as viradas de bateria. Um balanço de outras partes do corpo é algo quase impossível e, cantar junto ao vocalista, só em devaneios – pelo menos, aquele inferno sulamericano de cantarolar toda e qualquer melodia de guitarra só me parece possível em outra encarnação.

Em suma, Averill fez o diabo para tirar o público do Roadburn da sua lisérgica observação e falhou, o que reduziu um pouco a empolgação de sua apresentação – imagino o caos que teria causado num palco da América do Sul (fica a dica). E passou a tentar cativar, ou se desculpar, não sei, através de discursos, como explicar ter sido feito um set mais específico para o festival, calcado em faixas mais obscuras. Ainda assim, as enérgicas “Coffin Ships” e “Empire Falls” encerraram um show bem agradável, digno de um headliner de peso.

Quando o mítico guitarrista Matt Pike subiu ao palco não foi necessário nem terminar a primeira música do show para saber que seria uma apresentação bem quente.”

Fui direto ao Green Room pegar o resto do set do Mournful Congregation, que, do lado de fora, parecia fazer um dos mais emocionantes shows do Roadburn, mas conseguir entrar na sala era missão impossível. Assim, me posicionei no palco principal para uma apresentação muito especial: Alan Davey colocaria seu Pyschedelic Warlords para executar o grandioso Space Ritual do Hawkwind na íntegra.

E foi surreal, como o disco exige. Nuvens de fumaça tomaram conta do palco e da pista, danças delirantes na plateia, declamações entre as músicas, figurinos bizarros, saxofonista sentado no chão e execução perfeita de todas as faixas transformaram o show numa das experiências mais divertidas e extasiantes do Roadburn, colocando um belo ponto final no corrido primeiro dia do festival.

Roadburn, Parte 3: Electric Wizard promove sua orgia num segundo dia desgastante

O segundo dia de Roadburn teve alguns traços característicos. Com o nome de “The Electric Acid Orgy”, todas as bandas no 013 foram escolhidas por Jus Oborn, líder do Electric Wizard, uma instituição do Doom Metal que seria a headliner da noite.

Outra característica única do dia foi a transformação do Stage 01 no “The Electric Grindhouse Cinema”, projetando no telão filmes bizarros (em VHS, claro) escolhidos a dedo por Oborn. Para deixar a experiência ainda mais surreal, algumas dessas fitas seriam sonorizadas por outros artistas, em vez do áudio original.

Tive a oportunidade de ver o filme espanhol Hunchback of the Morgue (El jorobado de la Morgue, o título original é muito mais bizarro), com legendas em japonês(!) e som ambiente feito ao vivo pelo Void ov Voices, “nome artístico” de Attila Csihar. Preciso dizer que foi inesquecível?

Musicalmente, o dia seria bem concorrido. Com um palco a menos, a tendência foi atrações hiperlotadas. Dessa vez, sem estar completamente recuperado do dia anterior, resolvi acompanhar mais shows até o final em vez de ficar correndo em desespero entre os palcos para ver um pouco de tudo. Com isso, não pude ver as apresentações do Dream Death, Sabbath Assembly e o Hexvessel (com participação especial da bela Rosie Cunningham, da banda inglesa Purson). Frustrações típicas de um festival de alto nível.

Assim, ao chegar ao Roadburn, fui direto ao Het Patronaat acompanhar o primeiro show fora de Dublin do Dread Sovereign, projeto de Doom Metal tradicional do vocalista do Primordial, Alan “Nemtheanga” Averill.
Tendo ouvido e gostado muito das faixas do 7” de estreia do trio, a apresentação não decepcionou e as músicas inéditas mantiveram o alto nível das já conhecidas, com uma pitada a mais de Rock’n’roll do que o usual show de Doom, algo sempre bem vindo. Dessa vez, Averill, também no baixo, se comportou mais dentro dos padrões do festival, sem ser tão comunicativo.

Na sequência, ainda no mesmo palco, um dos shows mais esperados de todo o festival, o Kadavar. Os alemães soltaram seu disco de estreia muitíssimo bem recebido no ano passado, e já em 2013 lançaram o festejado sucessor, Abra Kadavar, ambos completamente fixados em Black Sabbath e bandas setentistas do estilo, adotado no visual e figurino da banda.

E a apresentação, misturando faixas dos dois álbuns, foi arrebatadora. O trio alemão botou a bateria na frente do palco, e era impressionante ver Tiger descendo a mão sem dó no seu kit. Wolf Lindemann cantou com perfeição e tocou guitarra como um lunático ao longo de uma hora, na provável experiência mais próxima de um show do Black Sabbath nos anos 70 que hoje uma pessoa possa ter.

Ainda no Het Patronaat, o show seguinte foi do Witch Mountain, outra pérola da nova safra de Doom Metal norte-americana. Comandado pelo exímio guitarrista Rob Wrong e com a sensacional cantora Uta Plotkin arrepiando nos vocais (um pouco baixos na mixagem), o set já de cara mandou dois destaques de seu álbum lançado ano passado, Cauldron of the Wild, e manteve o alto nível ao longo de quase uma hora.

Depois de três apresentações seguidas no Het Patronaat, deu tempo de correr e pegar um lugar bom para ver outra das mais aguardadas apresentações de todo o festival, os ingleses do Uncle Acid and the Deadbeats, num dos shows mais lotados do palco principal no Roadburn (apenas o Electric Wizard, mais tarde, teria mais gente nos quatro dias do evento).

O Uncle Acid and the Deadbeats é uma das novas apostas da Rise Above, a mesma gravadora que revelou ao mundo o Ghost. Depois de um disco de estreia pouco comentado (e hoje raríssimo de encontrar), o seminal Blood Lust teve sua primeira prensagem esgotada e foi relançado ano passado pelo selo de Lee Dorrian. O novo álbum, Mind Control, era um dos mais esperados desse ano e já vem recebendo críticas positivas.

No entanto, o grupo jamais havia se apresentado ao vivo até março deste ano, quando dois shows sold-out em Londres marcaram sua estreia nos palcos. O Roadburn seria o primeiro teste de fogo fora da Inglaterra. E o resultado não só não decepcionou, como foi a melhor apresentação de todo o festival.

Como o Ghost, a banda também não divulga a identidade, apesar de não se esconder atrás de máscaras, apenas dos cabelos caídos na cara. No palco, nenhum efeito especial de iluminação, apenas os quatro membros tocando sob luzes escuras e, ao fundo, vídeos sensacionais projetados no telão, numa mistura de imagens psicodélicas com mensagens contra-culturais subliminares.

E, da abertura com “I’ll Cut you Down” até o final com “Vampire Circus”, de Volume One, a performance da banda foi catártica, entregando com perfeição seu som setentista até o osso, com pitadas às vezes exageradas de Black Sabbath, uma sensibilidade pop à la Beatles e outras bandas mais lisérgicas, sem jamais deixar baixar a adrenalina. Um show histórico, com destaque para a ótima faixa nova, “Valley of the Dolls”.

O show do Goat é, de longe, uma das apresentações mais bizarras que eu já presenciei.”

Na sequência, o Pretty Things fazia uma apresentação bastante festejada, apesar do público bem pequeno no palco principal, o que significava dificuldades enormes para ver o Moss e o Cough no Green Room, e foi então que eu resolvi testar a experiência do Stage 01 com os filmes projetados no palco, num descanso antes do final apoteótico do dia.
Conseguindo deixar o palco principal ainda mais lotado do que no show do Uncle Acid and the Deadbeats, diferentemente da noite anterior, o Electric Wizard provava ser um dos headliners mais com a cara do Roadburn em todas as suas edições. As já tradicionais projeções de filmes bizarros enquanto se apresenta soa como algo comum no festival, do mesmo jeito que sua música lenta e hipnótica, bem como a celebração lisérgica, praticamente definem o festival holandês.

E, quando Jus Oborn subiu ao palco e anunciou logo de cara “Return Trip”, de Come My Fanatics…, para abrir o show, a fumaceira começou, a escuridão baixou e começou um ritual completamente subversivo no 013. Na bateria, a reestréia de Mark Greening era um elemento a mais para tornar o show ainda mais especial.

Ainda assim, foi preciso coragem para abandonar o palco principal – perder dois clássicos do porte de “Funeralopolis” e “Dopethrone”, que fecharam a apresentação – e me direcionar de volta ao Het Patronaat, onde o dia começara, para ver o Goat, que então já estava bem cheio e, lotado ao fim do Electric Wizard, formou-se uma fila quilométrica na rua de pessoas esperando para entrar e ver a banda.

Valeu a pena, sem dúvidas. O show do Goat é, de longe, uma das apresentações mais bizarras que eu já presenciei. O som já era algo quase indescritível, uma mistura de kraut Rock, com ritmos africanos e riffs barulhentos, entre outros inúmeros elementos musicais diversos, tudo numa simbiose hipnotizante e pegajosa. O show abraça e expande essa definição. Seja a começar por ser mais uma banda que esconde sua identidade (os press-releases afirmam serem imigrantes ilegais de local incerto do mundo, refugiados em algum vilarejo perdido na Suécia). A cada intervalo entre as músicas, uma escuridão completa, com apenas a imagem do bode satânico brilhando na igreja.

No palco, cores berrantes em alternância, todos os músicos mascarados, duas moças também sem mostrar o rosto correndo de lado a lado e dançando de forma frenética e esquisita, além de entoarem cânticos ritualísticos, algo meio vodu, gerando uma das maiores respostas de público, muito mais solto na última apresentação do dia, abraçando todo o teatro de caos demoníaco proporcionado pelo Goat. Obviamente, o hype em torno do Goat só aumenta (acabou de assinar com a gravadora lendária Sub Pop), o grau de misticismo mantém a curiosidade em alta e não sei muito bem se isso é bom ou apenas mais um golpe de marketing. Ao final do show, naquela hora da gélida noite, nada disso importava e só o cansaço era real.

Roadburn, Parte 4: Um sábado corrido apesar da cara de ressaca

Nas conversas pelo 013 no sábado, era nítido que o dia anterior fora muito desgastante – e sensacional, claro – então ninguém esperava o mesmo ritmo frenético no sábado. As atrações, por sua vez, também me eram menos atraentes.
Assim, o ritmo do sábado já foi uma prévia do que se caracteriza por ser o Afterburner. O começo da tarde se deu no Cul de Sac, para uma belíssima apresentação do grupo de hard Rock Gold, do ex-guitarrista do The Devil’s Blood, Thomas Sciarone.

Comandado pela performance de palco de Milena Eva, uma espécie de versão feminina lasciva do Mick Jagger, durante quarenta e cinco minutos o grupo holandês se apresentou de forma energética e empolgante, seja no cover de Fleetwood Mac, “Rhiannon”, ou nas ótimas composições próprias. Um começo mais relaxante para pegar a metade final do post-Metal do The Ocean no palco principal, tocando faixas do grandioso Heliocentric para encerrar a apresentação, num show para ser conferido com mais calma, deixando-se levar pelo clima das músicas.

Exatamente o que o francês Neige, o artista residente do Roadburn em 2013, prometera ao executar o brilhante Les Voyages de L’Âme do Alcest na íntegra no palco principal. Tendo se apresentado nos dois dias anteriores com o Lantlôs e Les Discrets, agora era a vez de seu projeto principal tomar conta do 013. E a apresentação foi linda, dando vida a um disco já cativante, desde a introdução de “Autre Temps” até o final sublime de “Summer’s Glory”, passando pela apoteótica “Faiseurs du Munde”, Neige promoveu uma experiência catártica, através de uma verdadeira jornada com sensação de começo, meio e fim, digno dos grandes álbuns.

Talvez por isso, quando o Alcest ainda executou outras duas músicas para encerrar seu show, entre elas a belíssima “Souvenirs D’un Autre Monde”, faixa-título de seu trabalho de estreia, o impacto não tenha sido o mesmo, pois a impressão era de que a viagem já acabara com os últimos acordes de “Summer’s Glory”.

E, confesso, demorou um certo tempo para voltar à realidade após o sensacional show do Alcest. Sem muita vontade de encarar o Het Patronaat, acompanhei por uns dez minutos a apresentação do Camera, mas toda a agradável improvisação rítmica do grupo não me causou qualquer reação. Tentei depois ver o Doom psicodélico dos americanos do Wo Fat, mas era impossível entrar no Stage 01.Acompanhei por alguns minutos o som do lado de fora, parecia muito bom, mas achei melhor me posicionar para conferir um pouco do Cult of Luna antes de ir garantir lugar no Green Room e ver a show do novo projeto guitarrista Victor Griffin, In-Graved.

O Cult of Luna veio como uma das melhores produções de palco do Roadburn. O jogo de luzes do grupo sueco era impressionante, mas pouco ou nada se conseguia ver exceto silhuetas da banda se apresentando. O som mecânico de Vertikal marcou o tom do início de sua apresentação, logo de cara seguido pela ótima “Ghost Trail”, e foi quando eu resolvi garantir meu lugar no Green Room.

Não sabia muito bem o que esperar do show do Victor Griffin’s In-Graved. A banda, que conta como ex-baterista do Trouble, Jeff Olson nos teclados, fez mais um show raçudo de Rock’n’roll do que de Doom, como indicaria o curriculum do guitarrista, que inclui Pentagram e Place of Skulls. O setlist foi baseado no disco de estreia auto-intitulado do In-Graved, e, pela sua qualidade, esperamos que seja uma formação duradoura. Claro, incluiu algumas surpresas, como a ótima “The Fall”, uma das três músicas do Place of Skulls executadas, logo no início da apresentação.

Fui, então, ao palco principal para conferir um pouco do segundo show do High on Fire no Roadburn, dessa vez dedicado ao resto de sua carreira. A apresentação energética do grupo continua intacta, assim como a pança sobressaliente de Matt Pike. Tempo para conferir a grande “Rumors of War” e me desejar sorte para pegar um show completo do grupo no futuro.

Pois, de volta ao Green Room, quis garantir meu lugar para ver o set da banda responsável por um dos meus álbuns favoritos de 2012, a grandiosa estreia dos finlandeses do Jess and the Ancient Ones. O grupo, com membros de Demilich e Deathchain, coordenados pela vocalista Jess, promove um verdadeiro culto ao demônio nos seus shows, mas sem jamais deixar o Rock’n’roll de lado.

E a apresentação começou de uma forma meio ritualística, apostando em faixas bem soturnas do seu primeiro disco e seu novo EP, Astral Sabbath, permeadas por danças meio desengonçadas da vocalista. No entanto, a grandiosa “Sulfur Giants” transformou o Green Room numa enorme seita hipnótica, ainda mais frenética em “Prayer for Death and Fire”. Depois do pequeno interlúdio de jazz em “Devil (in G minor)”, o set se encerrou de forma épica com a apoteótica “Come Crimson Death”, enquanto Jess gritava pela vinda de Lúcifer e todos, ofegantes, tínhamos certeza de que o calor todo era sinal da presença do cramulhão naquela salinha lotada num dos melhores shows de todo o festival.

Fui conferir, então, um pouco da lenda hardcore Die Kreuzen no vazio palco principal. O show estava bem animado, como esperava, mas quis também ver o Ash Borer no Green Room e dei, mais uma vez, com a cara na porta, de onde se sentiam violência e ódio exalados pelo grupo americano de Black Metal. Então, tomei posição para ver o show do lendário Godflesh, executando na íntegra o revolucionário disco Pure. Sinceramente, preferiria ter visto a apresentação de Streetcleaner inteiro anos atrás no mesmo festival. Mas, deixemos as reclamações de lado, era um evento histórico.
Pure é um disco meio industrial, de certa forma meio dançante, que aborda a frustração de forma completamente furiosa e experimental. No palco, apenas B. C. Green tocando baixo de um lado e Justin Broadrick controlando a bateria eletrônica, cantando e tocando guitarra do outro, com a participação adicional de Robert Hampson (do Loop) a partir de um certo ponto do show.

É um show de alto nível, as músicas são muito boas, o disco é influente, mas, depois de um certo tempo, a experiência se tornou um pouco maçante. Conforme o álbum era executado, mais e mais pessoas saíam, até que chegou a minha vez de ir ao Het Patronaat pela primeira vez no dia, e última no festival. Cheguei lá a tempo de pegar o Satan’s Satyrs promovendo uma verdadeira festa no palco com músicas do Blue Cheer. Show bem divertido, um clima completamente diferente do promovido pelo Godflesh no palco principal, servindo como uma celebração ao final do festival.

A atração derradeira, para mim, foi o Asphyx. Depois de tanto Doom, occult Rock e coisas bizarras, nada como um death Metal para alegrar o coração, né? Nem tanto, já que, para combinar com o clima do Roadburn, a trupe da lenda holandesa Martin Van Drunen prometera um set dedicado às canções mais arrastadas de seu repertório.

E teve sucesso. O Het Patronaat esteve lotado no início da apresentação, com a nova “Der Landser” e a clássica “MS Bismarck” logo de cara. Mas, o tempo passava e o cansaço dominava, as pessoas iam embora e pouco mais da metade da pista ainda aguentava firme para tirar um pouco de pó das juntas e abrir algumas rodas em “Deathhammer”, bem como no bis, com “Asphyx (Forgotten War)”, encerrando o Roadburn. “Encerrando”, naquelas. Ainda havia o Afterburner no dia seguinte.

Roadburn, Parte 5: A cura-ressaca do Afterbruner e a volta à realidade

O Afterburner é um dia à parte. Os ingressos são vendidos separadamente, pois muitas das pessoas que viajam ao festival voltam às suas casas no domingo. A sensação é mesmo a de um evento diferente. Primeiro, porque só há dois palcos, ambos dentro do 013. Não há mais o Het Patronaat, não há mais a área do V039 para cinema. O Stage 01 vira um estande de merchandising, o resto de camisas e posters passa a ser vendido em preço promocional. Shows, só no palco principal e no Green Room.

O público acaba sendo diverso. Aquela integração tão comum nos três primeiros dias parece morta, ouve-se muito mais holandês do que nos dias anteriores, quando a língua inglesa é dominante. Há uma sensação bem menor de comunidade, as caras cansadas do sábado dão lugar a um público renovado no domingo. Para quem encarou a maratona dos três dias anteriores, o Afterburner é uma espécie de retorno do mundo paralelo do Roadburn à realidade. E, ninguém faz transições como as bandas de Rock Progressivo, como bem provou o Astra logo de cara, fazendo um set bem relaxado baseado em seu último disco, The Black Chord.

Como os ingleses do Diagonal tiveram que cancelar sua participação no Roadburn devido à doença de um dos seus membros, o Pallbearer teve a chance de se apresentar de novo, dessa vez no Green Room. E a troca de palco mudou tudo.

A vocalista e saxofonista Dr. Mikannibbal envolta em sangue ajudou para reanimar a parte exausta do público.”

Tocando um set diferente da primeira apresentação três dias antes, o grupo, muito mais à vontade e entrosado num local mais apertado, ousou apresentar material ainda inédito, além de sua bela rendição Doom para “Gloomy Sunday”, eternizada na voz de Billie Holiday, talvez o melhor resumo das sensações deste Afterburner.

Os japoneses do Sigh, porém, entraram no palco principal do Roadburn para acabar com essa história de descanso, ou de dia do senhor. Queima da bíblia, a vocalista e saxofonista Dr. Mikannibbal envolta em sangue, foi completo o ritual satânico promovido pelo grupo – não sei se Black Metal descreve bem o seu som, bem mais complexo em direção ao Prog e Metal tradicional em vez de atmosférico usual nas derivações do estilo – e ajudou para reanimar a parte exausta do público.

Então, já com a alma devidamente encomendada ao diabo, resolvi conferir um pouco do Nihill – show de estreia dessa celebrada banda belga de Black Metal –, mas ver era o que havia de mais difícil no Green Room. A sala estava completamente lotada, e a fumaça era tamanha que mal era possível enxergar qualquer coisa e se mover enquanto a banda promovia um massacre no palco.

Sinceramente, não era o meu clima naquele dia. Então, fui ver o show de Michael Rother, acompanhado dos músicos da Camera, que serviu como um belo pano de fundo para relaxar, acompanhando os belos ritmos e melodias das músicas do Neu! e do Harmonia. Pensei conferir um pouco do Golden Void, mas encarar mais uma vez o Green Room lotado era uma distante e indesejada realidade.

E, na sequência, a palco principal pertenceria ao Spiritual Beggars, o projeto Rock’n’roll do lendário guitarrista Michael Amott. Agora com o vocalista do Firewind Appolo Papathanasio como frontman e a ajuda do ex-tecladista do Opeth Per Wiberg, divulgando seu novo trabalho Earth Blues, a vibração se alterou completamente para aproveitar um show eletrizante.

Diferentemente do que ocorrera com o Primordial no primeiro dia de Roadburn, Papathanasio teve mais sucesso ao tirar da dormência o público do 013. Palmas, pessoas cantando e dançando junto, todas reações inimagináveis nos dias anteriores ocorreram em profusão ao longo do set, que até estourou o seu tempo de 75 minutos regulamentares.
Mas, no fundo, não que um show com músicas fortes como “Young Man, Old Soul”, “Mantra” e a derradeira “Euphoria” não cativasse, mas era complicado manter a atenção e a força de vontade para acompanhar uma apresentação desse calibre como ela merece, e boa parte do público do 013 ecoava essa sensação.

Tendo visto alguns momentos do Die Kreuzen no palco principal no dia anterior, poderia até imaginar o grau de devastação que eles promoveriam no mais intimista Green Room naquele momento, mas, sentado confortavelmente no mezanino do palco principal, optei por esperar para ver o mestre norueguês Ihsahn. Os músicos da banda norueguesa de Prog Leprous não só acompanhavam o ex-músico do Emperor, como, para minha surpresa, também tiveram meia hora para impressionar a todos com uma música frenética e uma performance de palco doentia, mas poucos lhe deram de fato atenção.

Afinal, estávamos todos lá para ver Ihsahn. E, com um curto intervalo, os músicos noruegueses voltaram ao palco, agora completos. Apesar da performance de palco um pouco menos corrida, o show foi intenso, abrindo com a longa e lenta “On the Shores” e encerrando o set com a arrastada, porém macabra e avassaladora “The Grave”. Qualquer resto de energia acabou ali.

Por isso, apesar de até cogitar ver um pouco do show do Zodiac no palco principal, mas com fome e cansado (meu hotel ficava a um quilometro e meio do 013 e a caminhada sob o frio ficava mais penosa quanto mais a noite adentrava), resolvi encerrar os trabalhos do Afterburner após uma apresentação de altíssimo nível de um músico extraordinário como Ihsahn.

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O saldo final do Roadburn foi ótimo. Apesar do inevitável cansaço após quatro dias de shows sem parar, a experiência foi extraordinária. É um evento diferente do que estava acostumado – nenhum outro festival de Metal minimamente se compara a ele.

O cast traz apresentações de muitas bandas novas, cujos discos mal tivemos tempo de digeri-los por inteiro, e os grupos mais clássicos não promovem aquele clima de festa típico de outros festivais, nos quais fazem o possível e o impossível para cativar a parcela do público que não os conhece ou já está cansada. Definitivamente, o Roadburn não é o lugar para um frontman típico, nem para fãs passearem.

A sensação é mais a de participar de um ritual. A comunicação direta dos artistas com o público durante os shows é bem escassa, a própria natureza da maioria das bandas é, via de regra, mais introspectiva. Assim, cabe a você se manter disposto a aproveitar as músicas e as sensações que elas proporcionam.

Isso gera um desgaste diferente, menos físico e mais psicológico, mas igualmente exaustivo. Os resultados, porém, também são imensamente satisfatórios. Mas, infelizmente, não são muitas pessoas dispostas a participar de eventos assim.

Os organizadores do Roadburn felizmente sabem disso e se mantêm no tamanho e formato perfeitos para acomodar seu público fiel. Esse conhecimento da quantidade de gente interessada e do que elas de fato gostam ajuda a agigantar a experiência – e a viabilizar o festival.

Por isso, é bem difícil conseguir ingresso, que normalmente se esgotam horas depois de postos à venda. Conseguir um hotel em Tilburg para o festival é uma missão praticamente impossível (além de muito caro!) e, normalmente, as pessoas se acomodam nas cidades vizinhas e ainda encaram uma viagem de trem após os shows.
Mesmo com todos esses percalços, boa parte do público – e eu – já estamos fazendo as contas e tentando reservar hotéis para, entre 10 e 13 de abril de 2014, voltar a Tilburg.

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