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Um texto sobre Prog que se preze tem que ser como a música: comprido e cheio de detalhes. Entre no clima e bote sua canção de vinte minutos favorita como trilha!”

Roberto Gutierrez

Eu nunca havia ido a um cruzeiro. Me soava pouco atraente a ideia de ficar enfurnado, sem opção de sair quando desse na telha (salvo alguma atitude mais radical do tipo “homem-ao-mar!”), refém de uma convivência forçada (com uma galera de interesses nem sempre comuns aos meus) e de uma oferta gastronômica exagerada – praticamente um Natal fora de época! Minha má-vontade só aumentou quando começaram a pipocar esses tais cruzeiros temáticos, que agregam ao passeio uma “experiência” (eita palavrinha da moda), geralmente musical, atrelada a alguma figura bastante conhecida – tipo o Roberto Carlos ou o Padre Marcelo.

E assim foi, até que me apareceu uma mensagem (até agora não sei de onde, juro!) falando desse tal “Progressive Nation at Sea”. Por muito pouco, a mensagem não foi parar no junk mail, mas resolvi dar um crédito ao texto. E devo ter lido umas oito vezes até entender direitinho. Sim senhor, era um cruzeiro temático – ai ai ai – mas, ao invés do Robertão cantando “Detalhes” (fato inédito), os afortunados passageiros teriam o privilégio de assistir ao que seria, possivelmente, um dos line-ups mais surreais da história recente do Rock Progressivo. Lendas-vivas absolutas (Jon Anderson e Adrian Belew) e as bandas atuais mais representativas do estilo (Transatlantic e Spock’s Beard), lado a lado com ícones do chamado Prog Metal (Pain of Salvation e Devin Townsend) e até artistas “não-tão-Prog-assim”, mas igualmente queridos pelos fãs do gênero (King’s X e Anathema), entre muitos outros. Todos – quem diria? – enfurnados no mesmo navio.

Subitamente, este fã de músicas intrincadas esqueceu do seu preconceito e – favorecido por uma série de coincidências que tornaram o sonho de participar dessa aventura uma possibilidade bastante concreta – logo em seguida já reservava cabine e passagens de avião, uma vez que faltavam poucos dias para o início dessa maluquice.

All Aboard

Passadas duas semanas de ansiedade pura, lá estava eu no porto de Miami, junto com três amigos e outros mil e tantos fãs do mundo inteiro que haviam tido a mesma idéia. Já ali, deu pra sentir que seria um programa, no mínimo, diferente. A poucos metros de distância, Billy Sheehan fazia o check-in dos seus equipamentos. Derek Sherinian vinha logo em seguida. Ops, e aquele tiozinho ali, não é o Neal Morse? O pessoal se entreolhava, mal sabendo que os próximos dias seriam repletos desse tipo de encontro fortuito com seus ídolos.

Acomodado na cabine, a primeira providência foi bolar o “roteiro” do dia. Sim, porque estamos falando de cinco palcos ao todo (alguns maiores, outros menores), com shows paralelos. Ou seja, às vezes você tem que decidir, por exemplo, assistir à banda X em detrimento da Y, que tocam ao mesmo tempo em palcos diferentes. Porém, a coisa é tão bem sacada que, mesmo que isso ocorra, você ainda tem a chance de pegar a banda Y de novo, já que praticamente todas tocam mais de uma vez ao longo do cruzeiro. O que acaba sendo interessante também para o fã que quer seguir sua banda favorita, já que, na maioria desses casos, os setlists variam de um show pra outro. Outra coisa bacana é que todos os shows duram, no máximo, uma hora – independente do porte da banda. Parece pouco tempo, mas ao final de um dia com oito, nove shows na conta, isso vai ter feito uma baita diferença no seu grau de cansaço.

Mike Portnoy, espécie de curador do festival, não escondia sua empolgação”

Primeiro Dia – Terça-Feira, 18 de fevereiro

Por volta das 18h, com o navio zarpando, o “dream team” do Transatlantic (que pode ser considerado o “headliner” do evento) subiu ao palco principal – no deck da piscina do navio! – para executar, sob um belo pôr-do-sol e já com os edifícios de Miami deixando o horizonte, seu novíssimo álbum “Kaleidoscope” na íntegra. O clima não podia estar melhor, já que possivelmente todos os passageiros estavam ali reunidos naquele momento – afinal, o show de abertura não tinha concorrência. Mike Portnoy, espécie de curador do festival, não escondia sua empolgação. Com sua bateria posicionada de lado – alinhado, portanto, aos demais músicos –, ele se levantava e falava com o público ainda mais do que de costume. O setlist, inédito até então (já que o álbum recém saiu do forno), teve como destaque as duas partes da belíssima faixa-título.

Em seguida, toca procurar o tal palco Stardust, na verdade um belo anfiteatro, para assistir àquele que era, provavelmente, o maior nome individual do Progressivo a bordo: Jon Anderson. Desde sua saída um tanto conturbada do Yes, o vocalista tem-se dedicado a um formato solitário, acústico e intimista, mais adequado à sua voz ligeiramente envelhecida – porém ainda cheia de brilho e afinação. O repertório é parecido com o de shows similares que, acompanhado praticamente apenas de seu violão, Jon fez no Brasil há pouco tempo: uma mistura de músicas de sua prolífica carreira solo e versões “econômicas” de clássicos de seu ex-grupo (ao qual sempre se refere, modesta ou ironicamente, como “uma banda chamada Yes”), como Roundabout, I’ve Seen All Good People e Owner of A Lonely Heart – entremeadas por histórias pitorescas de sua carreira. Falando nisso, Jon nunca perde a chance de dar suas alfinetadas no ex-colega Chris Squire, como quando mostrou a versão, supostamente vetada pelo baixista, de Time and a Word, em ritmo de reggae (!) – que, cá entre nós, soou ótima.

Na sequência, decido voltar ao deck para um dos shows que eu mais aguardava: o dos ingleses do Anathema, que recentemente fizeram uma apresentação antológica em São Paulo. Cada vez mais distante do peso do início de carreira, a banda vem criando uma “persona” bastante original com sua música hipnótica e pungente, tendo emplacado dois álbuns maravilhosos na sequência (“We’re Here Because We’re Here”, de 2010, e “Weather Systems”, de 2012) que formam a base do show atual – e a trilha sonora da minha vida recente. O início com Untouchable (I e II) e Thin Air é arrebatador, dá taquicardia, e ainda teríamos preciosidades como A Simple Mistake (que fez muito marmanjo chorar, inclusive o escriba) e, fechando o set, Closer – com seu vocoder ao mesmo tempo sinistro e empolgante. Embora normalmente não seja rotulada como Prog, o som atual da banda bebe muito dessa fonte – como evidenciam a sofisticação dos seus arranjos e o caráter emocional de suas melodias –, embora também seja influenciado por artistas de fora desse universo, como Sigur Rós e Massive Attack.

Para fechar a noite, permaneço no deck para conferir um dos artistas mais talentosos dos últimos tempos – porém ainda um quase-desconhecido em Terra Brasilis, infelizmente: o canadense Devin Townsend. Pode reparar: muita gente ainda lembra do carequinha pelo seu trabalho com Steve Vai no clássico “Sex and Religion”, mas ignora sua obra prolífica e variada dos últimos vinte anos, seja com o Strapping Young Lad, seja em sua carreira solo ou com o DTP (Devin Townsend Project) – este último, foco das apresentações no festival. O vocalista-multiinstrumentista-produtor-performer entregou um show pesadíssimo e intenso, que conseguiu sacudir uma plateia conhecida por sua relativa passividade. No palco, Devin parece possuído: provoca o público, fala bastante entre as músicas, entrega-se plenamente. A banda que o acompanha é competentíssima, e contou com a presença graciosa da cantora holandesa Anneke van Giesbergen, parceira frequente nos últimos trabalhos – e que ainda faria seu próprio show no navio. Ao fim da apresentação, tida por muitos como a melhor do festival, Devin ainda permaneceria à beira do palco, por quase uma hora, atendendo aos fãs um por um – mostrando que, além de músico diferenciado, é também um baita dum gentleman.

Segundo Dia – Quarta-Feira, 19 de fevereiro

O dia seria pródigo em conhecer novos artistas. No palco Atrium assisti a boa parte do show de Felix Martin, um fenômeno da guitarra que transcendeu a internet”

O segundo dia seria uma verdadeira maratona, pois os shows já começariam a partir as 13h. Com o sol a pino – e muita gente da plateia estrategicamente posicionada na piscina e nas banheiras de hidromassagem, conferindo certo surrealismo à ocasião –, os londrinos do Haken deram início aos trabalhos. Conhece o Haken? Eu também não. Ou melhor, não conhecia. E me penitencio até agora por ter ignorado a existência dessa excelente banda, para mim a maior revelação do festival. O Haken segue as tradições do Prog – álbuns temáticos e músicas complexas, repletas de mudanças de tempo, andamento e harmonia –, porém com uma roupagem bem mais moderna e um cantor soberbo, Ross Jennings. O grupo focou a apresentação em seu trabalho mais recente (“The Mountain”), com destaque para a música Cockroach King e seu lindo arranjo vocal a la Gentle Giant, executado com maestria por toda a banda.

O dia seria pródigo em conhecer novos artistas. No palco Atrium (uma espécie de lounge em frente à recepção do navio) assisti a boa parte do show de Felix Martin, um fenômeno da guitarra que transcendeu a internet. Pra quem não conhece o rapaz, ele toca um instrumento de dois braços – e um total de 14 cordas –, usando e abusando da técnica de “tapping” (percutindo os braços da guitarra com as duas mãos). Acompanhado de dois músicos igualmente monstruosos – um baterista e uma espécie de “baixista”, mas que toca um instrumento parecido com o de Martin –, o venezuelano apresentou músicas já conhecidas do artista na web, com destaque para Tango. Mais tarde, no mesmo palco, pude conferir o show dos brasucas do Bad Salad – banda de Brasília que começou fazendo, com muita competência, covers do Dream Theater e passou a buscar um som autoral (influenciado, como não podia deixar de ser, pelos americanos) que chamou a atenção do curador Portnoy e valeu sua presença no festival. Nessa hora o Atrium estava lotado, afinal o público tupiniquim era o terceiro maior contingente do navio (atrás apenas dos EUA e Canadá). Mas os brasilienses fizeram um ótimo show e, certamente, cativaram também fãs de outras nacionalidades. Ali também descobri uma outra banda brasileira, esta de Porto Alegre, chamada Daydream XI, que nos representaria no palco Bar City, mas cujo show infelizmente não tive tempo de conferir.

Em meio a esses dois shows no Atrium, pude pegar no deck um pouco do Beardfish (banda que incorpora uma interessante sonoridade sessentista ao Prog) e um outro tanto dos poloneses do Riverside, que tocavam sob um sol de rachar o coco (vestindo camisetas pretas de manga comprida, frise-se). A banda já é bem conhecida do público, e seu som mais melodioso do que complexo tem conquistado muitos fãs pelo mundo. Pena que, no palco, a banda sofreu com problemas técnicos que tiraram o brilho da sua apresentação.

A ex-The Gathering é, com o perdão da palavra, o pacote completo: linda, afinadíssima, dona de um timbre único e de um bom gosto atroz na escolha do repertório”

Baixista que sou, viajei ansioso também pela oportunidade de assistir de pertinho uma clínica com ninguém menos que Billy Sheehan, monstro dos monstros em seu instrumento. Com praticamente quatro décadas de serviços prestados ao Rock, Mr. Sheehan – que viajou para se apresentar com Portnoy, Sherinian e Tony Macalpine – demonstrou no palco do Spinnaker Lounge, espécie de american bar do navio, a empolgação de um iniciante em cada nota do seu baixo e em cada conversa com aos presentes. Como ele mesmo disse, a clínica não seria só uma demonstração gratuita de técnica (o que ele tem de sobra), mas principalmente um bate-papo sobre “o que vocês quiserem”. Com altas doses de simpatia e simplicidade, falou sobre tudo: seu background teórico (que, aliás, é quase nenhum), seus hábitos de treinamento, sua perspectiva sobre a vida na estrada, sua experiência acompanhando músicos do mais alto gabarito. Chegou até a pedir emprestado (e tocar) um belo Alembic de um rapaz da plateia. Ao fim de uma hora, ficou claro que tivemos muito mais do que uma aula de música – foi uma emocionante aula de vida na (e pela) música.

Ainda nas nuvens, permaneci para o primeiro show de Anneke van Giersbergen (ou só Anneke para os íntimos, OK? rsrs), na minha opinião a melhor cantora do Rock atual. A ex-The Gathering é, com o perdão da palavra, o pacote completo: linda, afinadíssima, dona de um timbre único e de um bom gosto atroz na escolha do repertório. Como se não bastasse, é simpática até dizer chega: ao invés de ficar no camarim esperando a hora de subir ao palco, ficou por ali mesmo, acomodada nas cadeiras do bar, trocando ideia com o seu público. Quando chegou a hora, fez um convite irresistível: “que tal se todos sentassem no chão?” – uma configuração certamente mais adequada ao formato violão-e-voz da sua apresentação. Obedecemos, claro, e, em alguns segundos, estávamos todos ali enfeitiçados pelo seu carisma. Seu set iniciou-se – segura coração – com My Electricity, de sua antiga banda, e seguiu com pérolas da carreira solo (como a tocante Beautiful One) e covers surpreendentes (como a bela Drowning Man, de um U2 ainda em início de carreira). Em dado momento, chamou ao palco Danny Cavanagh (Anathema), amigo de longa data, para fazer parceria em The Blower’s Daughter e Jolene. Foi difícil reunir forças pra se levantar ao final de um show tão honesto e delicado.

Mas ainda precisava me recompor a tempo de ver a lenda do Hard Rock King’s X, no anfiteatro. A princípio parecia que a banda seria um peixe fora-d’água no cast do festival – isso até vermos músicos de outras bandas, como Vincent Cavanagh (Anathema), na primeira fila da plateia, delirando com cada nota de Doug Pinnick e companhia bela. Aliás, o baixista e vocalista do King’s X, já um sessentão, está em ótima forma – física e musicalmente –, mais parecendo um Iggy Pop com vozeirão soul. Seu baixo distorcido a la Lemmy conduziu um show feito com muita garra e talento, conquistando até os (ainda) céticos com essa instituição do Rock’n’Roll.

A noite seria encerrada com outra lenda do Prog, Adrian Belew e seu Power Trio. Para os mais incautos – sim, havia ali quem não o conhecesse –, Belew foi peça-chave do King Crimson de Robert Fripp por muitos anos e, até hoje, faz jus à fama experimental da banda. Apesar de seu visual incomum para o contexto – carequinha, mais parece um gerente de banco –, o guitarrista simplesmente demoliu, em uma hora, os cânones do Rock’n’Roll com uma apresentação eletrizante e cheia de improvisos – cortesia também dos dois estupendos músicos que o acompanham, principalmente a baixista Julie Slick, que tem cara de novinha mas toca como gente grande. Foi possível ter uma medida da relevância de Belew ao constatar que vários músicos das outras bandas estavam ali para reverenciar o mestre, que fechou a noite com toda a autoridade que lhe compete.

Terceiro Dia – Quinta-Feira, 20 de fevereiro

Bigelf parece um Black Sabbath (da fase Sabotage) mais moderno e Progressivo, injetando uma boa dose de psicodelia e setentismo ao som do festival”

O roteiro do terceiro dia previa uma parada estratégica na praia de Great Stirrup Cay (ilha privativa da companhia de cruzeiros) – muito bem vinda, aliás, pra repor as energias. Já estávamos no Caribe, como denunciava o estonteante azul-esverdeado (ou seria verde-azulado?) típico das águas da região. Foi curioso observar fãs e ídolos – muitos com cara de que não viam uma praia há séculos – compartilhando o mesmo teco de sol, mar e areia. E foi divertido também constatar que a mesma programação sonora do navio se estendia ao passeio: caixas de som estrategicamente distribuídas ao longo da faixa de areia tocavam coisas que possivelmente – e infelizmente – nunca mais vou escutar em uma praia, como Rush, Genesis e King Crimson (!).

Voltamos ao barco preparados para mais um banquete musical, que (re)começou com o Bigelf, banda “queridinha” de Portnoy – e que chegou até a abrir para o Dream Theater no Brasil. Liderada pela figura ímpar de Damon Fox e seu arsenal de teclados e órgãos elétricos, a banda parece um Black Sabbath (da fase Sabotage) mais moderno e Progressivo, injetando uma boa dose de psicodelia e setentismo ao som do festival. Fizeram um show bastante energético e competente, contando inclusive com a participação do padrinho – dando uma força na batera em um par de músicas.

Dali, fui acompanhar os ingleses do The Safety Fire, outra banda da nova safra. Seu som ao mesmo tempo complexo e pesado – cortesia, principalmente, da insana dupla de guitarristas – sofreu um pouco com o som embolado do local. Uma pena, porque eles fazem uma música bastante criativa – uma mistura de Opeth e Mars Volta é minha ingrata tentativa de defini-los – e são mais bem-humorados (atenção: humor inglês, OK? Não digam que eu não avisei) do que a média dos artistas do estilo, como pode ser conferido nos insólitos clipes da trupe.

A expectativa pelo show do Pain of Salvation era grande, afinal semanas antes a notícia da internação do guitarrista-vocalista-compositor-fundador-e-líder-nato Daniel Gildenlöw (graças a uma infecção razoavelmente séria) havia colocado em risco a participação da banda no cruzeiro. De fato, diversos shows da turnê foram cancelados, o que é compreensível – afinal, mal comparando, é como se fosse o Megadeth sem Dave Mustaine. Mas para o PN14 a banda conseguiu a proeza de descobrir um substituto capaz de fazer as partes de Daniel (algo nada trivial) na figura do islandês Ragnar Zolberg. O rapaz é talentoso e tem uma voz bastante peculiar, um tanto feminina, e interpretou com competência clássicos como Used e Iter Impius, que emocionaram os fãs. Talvez até pelas circunstâncias, a banda tocou com uma empolgação extra e fez literalmente tremer o pequeno Spinakker Lounge.

Não resisti a assistir, outra vez, à diva Anneke (e vou poupá-los de mais elogios para não parecer redundante), assim como a um bom pedaço do Flower Kings (banda sueca capitaneada por Roine Stolt, também Transatlantic, mas que, confesso, nunca me agradou muito). Também não pude evitar de rever Devin Townsend em ação em mais um show avassalador – para, em seguida, voltar à cabine e capotar de sono.

Quarto Dia – Sexta-Feira, 21 de fevereiro

Nem sempre quatro estrelas formam um grande time, mas neste caso o PSMS abusou. Os caras têm uma conexão meio que telepática entre si”

Infelizmente chegou o último dia (tava com um medo que isso acontecesse!…), e tínhamos outra uma parada programada, desta vez nas Bahamas. Diferentemente do dia anterior, quando o navio permaneceu em alto-mar e chegamos à ilha por meio dos “tender boats”, aqui o navio ancoraria no porto e estaríamos livres, cada um, pra fazer o passeio que quiséssemos. Após um rápido pulo na praia de Taino (muito bonita, por sinal) e uns goles da cerveja local Kalik (muito ruim, por sinal), voltamos ao navio, tal a ansiedade de curtir o último dia de boa música.

Porém, a programação nesse dia seria bem mais “light” – talvez como forma de nos readaptarmos gradativamente à vida ordinária do mundo exterior –, porém não menos bombástica. Abriram-se os trabalhos com o projeto de Portnoy, Sheehan, Macalpine e Sherinian (ou PSMS para os íntimos). Bom, há muito pouco a se dizer sobre esses quatro caras, além do fato de que dominam seus respectivos instrumentos e têm uma ficha corrida de respeito no mundo do Rock’n’Roll. Nem sempre quatro estrelas formam um grande time, mas neste caso o PSMS abusou. Os caras têm uma conexão meio que telepática entre si, só pode, tal a precisão e complexidade dos temas que eles tocam. Ganharam o público com clássicos do Dream Theater, como a introdução instrumental de A Change of Seasons (quase enfartei!), e, valendo-se da dobradinha Sherinian/Portnoy, tiraram o pó de sons do polêmico “Falling Into Infinity”, como Anna Lee (cantada por Ted Leonard do Spock’s Beard), Burning My Soul (por Devin Townsend, que desconstruiu a melodia original) e Lines in the Sand (por Tony Harnell e, assim como na versão gravada, Doug Pinnick). Que me perdoem os fãs do DT – entre os quais me incluo –, mas confesso que delirei ao escutar as versões com Sheehan no baixo e Macalpine na guitarra. Foi como dar vida nova a essas composições, meio esquecidas atualmente por Petrucci & Cia. E quando o quarteto mandou a estupenda Shy Boy, de David Lee Roth, o jogo já estava ganho.

Não resisti e vi novamente o show do Anathema, o que me custou (perdoem-me, Proggers) nada menos do que ver o Spock’s Beard em ação. Fica pra um próximo cruzeiro (?!). Mas fui “recompensado” pela execução soberba de A Natural Disaster, que havia ficado de fora do set anterior. Nessa música, Danny pediu que se apagassem todas as luzes (sim, todas!) do anfiteatro. Teria sido, possivelmente, uma das mais incríveis experiências da minha vida, não fosse o bando de gente do público que não entendeu o recado e levantou os celulares iluminados (à moda dos isqueiros de antigamente) – o que acabou, vá lá, dando um outro tipo de charme à situação.

Na sequência, aconteceu um episódio bastante curioso. Avistamos na recepção Portnoy e Morse assoberbados, correndo de um lado a outro, como se fossem moleques articulando algum plano ardiloso. De certa forma, era isso mesmo: seguimos o movimento e “descobrimos” um show secreto, armado à última hora (coisas do hiperativo Portnoy), que consistia em um tributo “all-star” aos Beatles, ao som de violões e o que mais estivesse à mão. Senti-me afortunado em capturar esse momento que acabou agraciando uns poucos passantes. Dá-lhe, então, pedras fundamentais da música moderna, como Eight Days a Week, I’m a Loser, Nowhere Man e Please Please Me, entre muitas outras. A jam acabou reunindo figuras de várias bandas, e impressionou por demonstrar o quanto todos eles leram (ou melhor, escutaram) a Bíblia do Rock/Pop de trás pra frente, já que todos faziam as harmonias vocais no improviso (que, mesmo com o despojamento da ocasião, soaram sensacionais).

Foi bacana ver o palco sendo invadido por músicos de várias das bandas presentes, provocando o momento mais catártico do festival”

O clima de “tá terminando” já dava as caras quando nos acomodávamos para assistir ao show de encerramento: Transatlantic com Jon Anderson. Exceção às demais apresentações, esta teria mais de uma hora de duração. Na verdade, duraria o que desse na telha de Mr. Portnoy – à moda dos saudosos “An Evening with…” de sua ex-banda. O set “normal” já foi matador: ao invés de fazer o novo álbum na íntegra, a banda decidiu pinçar as músicas mais marcantes de sua pequena discografia. Começaram com Whirlwind – o que deu calafrios em todos os presentes, já que a versão original tem, pasmem, 80 minutos de duração (!!!) –, mas o bom senso imperou e a música foi exibida em sua versão editada, de “apenas” meia hora. Na sequência, a banda recebeu Adrian Belew para o sensacional – e bizarro – cover de Indiscipline, do King Crimson (bônus do novo álbum “Kaleidoscope”). Depois, ainda rolaram três magníficas peças autorais, como We All Need Some Light, All of the Above e Stranger in Your Soul.

Porém, o melhor ainda estava por vir: após um curto intervalo, surgia no palco Jon Anderson para uma jam final em torno de clássicos do Yes. Isso todos já esperavam. Mas alguns quase infartaram quando Jon iniciou, com sua voz baixinha, um mantra bastante familiar: “Dawn of light lying between a silence and sold sources…” Sim, senhores, era a introdução de Revealing Science of God, uma das quatro músicas daquele que é, possivelmente, o trabalho mais ambicioso do Rock Progressivo, o álbum “Tales from Topographic Oceans”. Reconhecido hoje como um marco do estilo, foi bastante polêmico na época por ser considerado um tanto exagerado e ter sido o estopim da dissolução da formação clássica do Yes. Mas a música é um clássico praticamente esquecido, e se houvesse uma bolsa de apostas do Prog, quem botasse suas fichas nessa teria feito uma grana boa. A plateia parecia hipnotizada, tal a incredulidade geral. Continuando as surpresas, uma favorita deste que vos escreve foi escolhida: Long Distance Runaround, uma relíquia do álbum “Fragile”, mas também ausente dos shows do Yes há algum tempo. Depois veio And You And I – linda, mas essa pagaria pouco na minha bolsa de apostas imaginária, já que o Transatlantic a regravou recentemente. O encerramento, com Starship Trooper, também não foi exatamente uma surpresa – o final apoteótico da música é ideal pra ocasião –, mas foi bacana ver o palco sendo invadido por músicos de várias das bandas presentes, formando uma verdadeira “corrente pra frente” (desculpem a breguice do termo, mas não resisti) e provocando o momento mais catártico do festival. Dava pra ver quão felizes estavam todos eles, mas especialmente radiante estava Jon, cuja música era, afinal, celebrada naquele momento. Há instantes que definem (ou redefinem) a importância da carreira de um artista – e esse definitivamente foi um deles. Foi emocionante fazer, de alguma forma, parte disso, coroando um sentimento de êxtase e comunhão pela boa música (soou brega de novo, eu sei) que pontuou esses quatro dias inesquecíveis.

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Como bem disse um amigo, se esse navio tivesse afundado, o Rock Progressivo acabaria. Descontado o exagero da afirmação, ela ajuda a ter uma idéia de quão relevante foi o cast das bandas, e quão extasiados estavam todos ao partilhar a paixão por essa forma de Rock tão combatida – mas, pra quem gosta, tão especial e única. Infelizmente não consegui assistir a todas as bandas (além do Spock’s Beard, faltou ver Periphery, Animals as Leaders, The Dear Hunter, Tony Harnell & Bumblefoot, Mark Mikel, etc) e outras fizeram falta no line-up (Steven Wilson, Opeth, Fates Warning, etc), mas a experiência foi indescritível mesmo assim. Voltar dessa verdadeira “Ilha da Fantasia” (os mais velhos vão entender!) do Rock não foi fácil e, pra mim, escrever esse texto, além de externar e compartilhar tudo que aconteceu ali, é também uma forma de terapia de readaptação ao “mundo real”. E que venha o Progressive Nation at Sea 2015!…

Sobre o autor: Roberto Gutierrez é baixista e vocalista da banda brasileira de Metal Progressivo Hollowmind e ainda detesta cruzeiros, mas agora abre exceções às vezes.

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