Eleanor Goodman, editora da icônica Metal Hammer, fez uma matéria sobre sexismo no heavy metal.

A resenha foi publicada no sábado, 7 de março, véspera do Dia Internacional da Mulher.

Goodman conversou com as mais proeminentes mulheres da indústria da música, além de algumas artistas de bandas de metal.

O objetivo era ouvir as opiniões sobre quais as dificuldades que as mulheres ainda encontram para entrar nesse meio. E se existem atitudes de discriminação fundamentadas no sexo, ou seja sexismo, no heavy metal.

Eleanor Goodman ocupa o cargo de “editora adjunto”, sendo assim a segunda pessoa no comando da edição da Metal Hammer. Ela também co-apresenta o podcast da revista.

Eleanor Goodman e Doro Pesch

Confira abaixo a matéria na íntegra:

Gloria Cavalera é uma das mulheres mais famosas da história do metal. Como empresária do Sepultura no início dos anos 90, ela supervisionou a transição da banda de pouco conhecida para tornar-se um dos sucessos globais mais marcantes.

No entanto, suas realizações foram diminuídas aos olhos dos homens que a culparam por Max Cavalera ter saído da banda em 1996 e separado o Sepultura. E por isso ela enfrentou uma torrente de misoginia e uma chuva de e-mails carregados de ódio.

“Eu recebi um monte de ameaças de morte por algo que eu nunca fiz. Eu aprendi a usar isso pra ficar mais forte”, diz Gloria. Seis meses atrás, um cara me enviou uma mensagem dizendo que ele cagaria no meu túmulo pois ouviu boatos do que eu fiz pro Sepultura. E o que eu fiz? A Sharon Osbourne me disse: ‘Você é a culpada’. E eu tipo, ‘Culpada do quê?’ E ela disse: ‘Do sucesso deles’.”

Rock e metal há muito tempo são dominados por homens. No Facebook da própria Metal Hammer, 25% dos likes são de mulheres e 75% de homens. Das 17 bandas anunciadas para o palco principal do Bloodstock 2018, o Nightwish é o único com uma integrante feminina. Na indústria da música em geral, uma pesquisa publicada pela UK Music Diversity Taskforce em janeiro, mostrou que mulheres entre 25 e 34 anos representam 54% da força de trabalho – mas apenas 33% quando têm entre 45 e 64 anos.

Desde que tivemos o escândalo Harvey Weinstein em outubro de 2017, expondo um desequilíbrio de poder de gênero em Hollywood, a indústria do entretenimento como um todo passou por uma pressão crescente para colocar sua casa em ordem. Então, a pergunta é: Será que a música pesada tem de fato um problema com sexismo e está afetando as carreiras das mulheres?

“Mulheres aguentam muita merda”, diz Gloria. “Essa coisa toda do movimento #metoo, alguém acha que os abusos começaram só agora? Isso acontece desde as fotos dos homens das cavernas puxando as meninas pelos cabelos. As mulheres sempre foram deixadas para trás. Pessoalmente, acho que ainda é muito difícil para as mulheres na indústria hoje, porque não há muitas mulheres, mesmo nas bandas.”

Como Gloria, Wendy Dio é uma veterana da indústria da música e começou como empresária há 35 anos. Ela trabalhava na Decca Records, em bookings de shows e para advogados do ramo da música antes de ingressar na administração e cuidar da carreira de seu marido, Ronnie James Dio.

“Eu vim de um passado trabalhando na música antes de conhecer o Ronnie – na verdade, foi por isso que conheci o Ronnie”, explica ela. “Mas você sabe, as pessoas não pensam nisso. Eles dizem: ‘Oh, é apenas a esposa dele, é por isso que ela está lá, ela não sabe o que está fazendo.’”

No começo da carreira, ela se lembra de discutir com um promotor de shows em meados dos anos 80, que tentou descontar 1200 dólares do cachê de Dio por causa de ‘cadeiras quebradas’. “Eu disse: ‘Bem, posso ficar com as cadeiras? Se eu estou pagando por elas, gostaria de levar as cadeiras pra casa!”, ela conta dando risada.

“Ele respondeu: ‘Bem, ninguém nunca pediu isso antes!’ E então ficamos discutindo e no final, eu disse: ‘Sabe o que? Eu gasto 1200 dólares no almoço – fica pra você. Você obviamente precisa mais do que eu. ‘E ele acabou me dando o dinheiro.”

Ela diz que não sofre mais porque construiu uma reputação e aconselha as mulheres hoje a seguir em frente e a fazer o mesmo. “Você só precisa seguir em frente, e seguir em frente e provar que sabe o que está fazendo.”

Maria Ferrero também entrou na indústria nos anos 80. Como CEO, Presidente e Diretora de Publicidade da Adrenaline PR, ela cuida de bandas como Lamb Of God, Sabaton e o legado do Motörhead.

Ela era uma “adolescente problemática que frequentou reformatórios” quando começou a falar com pessoas através da seção de correspondência da revista Metal Forces e a visitar uma loja de discos chamada Rock n’ Roll Heaven em East Brunswick, Nova Jersey.

A loja era tocada por Jonny Zazula e Marsha Zazula, que fundariam depois a Megaforce Records, que acabaria assinando com o Metallica. A dupla permitiu que Maria os ajudasse, atendendo telefones e abrindo correspondência.

“Eu só tive contato com o negócio da música, em família”, diz ela. “Não com o lado corporativo ou com o lado dominado pelos homens. Até bem recentemente eu nunca tinha sido impactada pelo fato do ambiente ser dominado por homens. Eu nunca prestei muita atenção nisso. Mas de 2 anos pra cá, isso ficou óbvio.”

Ela lembra de uma experiência que hoje em dia seria encarada com indignação. O Metallica, Motörhead e o Raven vieram fazer um show em Nova York em 1983, quando Maria tinha 15 anos. Era o 20º aniversário de James Hetfield, e ele tirou uma foto do Lemmy abraçando Maria e uma amiga.

“Enquanto James estava tirando a foto, Lemmy agarrou meu peito direito e o peito esquerdo dela, e nós ficamos tipo ‘Argh!’. E eu era menor de idade. Eu fiquei tipo ‘merda, espero não pegar verruga’. Eu ri. Desde que eles não estejam atraindo pessoas pra salas como fez o Harvey Weinstein, temos que lutar por nós mesmas! Mulheres também passaram a mão em bundas de homens! Mas temos que aprender com os erros e seguir em frente. ”

Como integrante da geração seguinte, a tecladista e vocalista do Creeper, Hannah Greenwood está fazendo exatamente isso – denunciando comportamentos que a deixam desconfortável. Em novembro de 2016, ela foi ao Facebook para desabafar sobre um produtor de palco na Holanda que não a deixava entrar no lugar do show durante a montagem mesmo com a credencial de acesso total que ela tinha.

“O sexismo não pode rolar. Nenhuma mulher deve sentir que não pode fazer algo por causa de seu sexo”, escreveu ela. Em dezembro de 2017, ela twittou sobre um incidente que aconteceu em um show em Manchester. Ela foi até a frente do palco para cantar “Darling” com o vocalista Will Gould, quando ouviu alguém chamar seu nome.

“Um cara gritou: ‘Hannah, você tem uma bunda maravilhosa!’. Ouvi alguém dizer meu nome, mas não ouvi o que ele disse depois; foi só quando saí do palco que alguém disse: ‘Você ouviu aquele idiota gritando essa coisa sobre sua bunda?’ Depois que eu twittei sobre isso, descobri que havia um grupo inteiro de caras que estavam realmente bêbados e falando bobagens pra outras garotas na plateia e passando a mão nelas. Isso deixou todos nós muito putos.”

Muitos fãs saíram em defesa de Hannah nas redes e a aplaudiram por se manifestar. Em um mundo pós-Weinstein, incidentes de assédio sexual – desde comentários de natureza sexual até apalpar e além – são constantemente denunciados. Shirley Manson, que ganhou fama nos anos 90 com o Garbage, avalia que o movimento #metoo tem sido uma força positiva para as mulheres jovens.

“Por mais triste e terrível que o movimento #metoo seja, também é fenomenal, único e incomum ouvir tantas vozes femininas diariamente na mídia, falando sobre a experiência das mulheres e a rebelião feminina”, diz ela.

“E infelizmente, embora provavelmente não vai mudar tudo de uma vez, porque sinto que temos uma montanha para escalar, acredito que o #metoo está educando toda uma geração de jovens a não aguentar a merda que foi feita. ”

Quando Shirley era mais jovem, ela nem sempre conseguia identificar o sexismo, porque isso coloria seu mundo de maneiras insidiosas. “Eu reconhecia o sexismo flagrante, mas nem sempre o sexismo secreto – ‘encorajamento’ para encantar o olhar masculino, e como as mulheres são colocadas umas contra as outras, e como parecemos ter sido criadas com a crença de que não há espaço para mais de uma artista mulher, e que para prosperar como uma artista feminina, você deve deslumbrar”, explica ela. “Na verdade, acho que tudo isso é realmente errado, mas demorou muito tempo para percebermos isso.”

Mas nem todo mundo tem certeza se os efeitos desse discurso são inteiramente benéficos. Julie Weir, chefe do selo Music For Nations da Sony, reconhece que estamos vivendo em uma sociedade patriarcal, mas teme que o barulho nas mídias sociais possa impedir as mulheres de entrar no setor.

“É preocupante que algumas das meninas mais jovens tenham um pouco de ressentimento em serem mulheres na indústria da música”, diz ela. “Não sei se é porque eles veem mais pessoas falando sobre isso, e é algo mais aberto principalmente online. Mas acho que é uma coisa boa e ruim ao mesmo tempo; é uma área muito cinzenta.”

“Porque, se as pessoas estão falando sobre isso, sem dúvida vai fazer com que esse ambiente melhore, mas também traz mais à tona e enfatiza mais o problema. Honestamente sempre fui da opinião de que trata-se de ser o melhor ser humano que você pode ser, independente do seu gênero.”

Julie trabalhou em vários lugares na cena antes de empreender por conta própria. No início dos anos 90, ela escreveu para a revista de música da Universidade de Salford enquanto estudava sociologia e cultura popular e depois trabalhou na Nail Records em Leeds (uma loja especializada em heavy metal, industrial e hardcore).

Ela se mudou para Londres para estudar cinema e mídia. Lá se envolveu com merchandising da Cacophonous Records e depois passou a ser gerente dos selos. Em 1998, ela criou a Visible Noise Records, cuidando das carreiras de bandas como Bring Me The Horizon e Bullet For My Valentine. Agora na Music For Nations, ela é responsável por artistas como Bury Tomorrow e Andrew WK, entre outros.

“Existe todo esse papo que mostra que é realmente difícil ser mulher na indústria da música, e eu nunca senti isso”, diz ela. “Eu particularmente não tenho todo esse sentimento de ‘sentir pena de mim mesma porque sou uma garota’. Sou filha única e sempre fiz o que queria, por isso é uma coisa inerente pra mim.”

A diretora do festival Bloodstock, Vicky Hungerford, tem uma opinião ainda mais direta. Ela trabalhava em vendas em um jornal antes que seu pai, que fundou o festival, lhe pedisse para vir ajudar por conta do aumento da carga de trabalho. Em 2005, ela assumiu o papel de agendar as bandas do festival e trabalha ao lado de sua irmã e marido.

“Vou parecer a pessoa mais anti-feminista agora, mas eu não sou fã do Dia Internacional da Mulher. Acredito que, se ficarmos tendo a percepção que as mulheres são menores, então nos tornamos menores. Eu acho que se você é bom no seu trabalho, independentemente de ter um pinto ou seios, isso não faz nenhuma diferença”, diz ela.

Ao mesmo tempo que ela reconhece que existe sexismo, ela diz que a resposta pra esse problems é encerrá-lo e seguir em frente. “Eu senti essa coisa sexista ao longo dos anos, mas eu a cortei pela raiz”, diz ela.

“Alguns anos atrás, um ajudante de palco não sabia quem eu era e perguntou ao meu marido se ele poderia receber um boquete ‘daquela garota ali’ que era eu. Fui lá, me apresentei e disse: ‘Oi, prazer em te conhecer. Eu sou a Vicky, a promotora do festival. ‘O olhar no rosto dele era:’ Eu adoraria estar em qualquer lugar, menos aqui ‘. É como você lida com esse tipo de coisa que faz a diferença. ”

Em 2018, o Nightwish foi a principal atração da noite de domingo do Bloodstock. Vicky diz que o festival não discrimina positiva nem negativamente quando se trata de agendar bandas com mulheres, e ela nunca ouviu comentários indesejáveis ​​sobre artistas mulheres de agentes, empresários, bandas, gravadoras ou promotores.

“O Nightwish foi a primeira banda sold out no festival indoor de 2003. Com o Within Temptation aconteceu o mesmo em 2005. Sempre que tivemos bandas com vocalistas mulheres, elas esgotaram.”

“Eu acho que se as pessoas ficam falando que ‘existe sexismo’, isso vai criando um problema. É como se você dissesse a si mesmo que tem peitos pequenos ou barriga grande, e começasse a achar que tem dismorfia corporal e começasse a acreditar nisso, porque você fica martelando isso na sua cabeça. Talvez devêssemos ser positivos e apenas dizer que não há problema. “

Mas se de fato as portas estão abertas a todos os sexos, por que tão poucas mulheres aparecem nos palcos de rock e metal? Será que simplesmente não há bandas suficientes no pedaço? Quais dificuldades sistemáticas as mulheres enfrentam para chegar lá?

“Todo o ‘jogo do rock’ foi projetado e mantido pelo patriarcado”, diz Shirley. “Então, como as regras são escritas por homens, torna muito difícil a infiltração de mulheres. Ainda é muito difícil para as mulheres serem tratadas como pensadoras e criadoras iguais”.

Hannah concorda que o sexismo ainda é uma barreira de entrada na música pesada, seja porque as mulheres estão sendo ativamente discriminadas em algum nível ou simplesmente porque adiam a tentativa por ter que “pular o obstáculo adicional” de ser mulher. Mas ela também acha que representação é um problema. Por exemplo, o mundo pop tem uma proporção maior de mulheres nos palcos.

“As pessoas sempre pensam que as estrelas pop são mulheres bonitas e magras, com cabelos muito compridos e maquiagem incrível, e então o rock e o metal é como um clube sujo de garotos. E tem sido retratado dessa maneira por tanto tempo na mídia, que me preocupo que as mulheres erradamente achem que não possam participar”, diz ela.

Maria e Julie também apontam para a desistência que ocorre em todos os setores quando as mulheres têm filhos. “Sempre haverá mais artistas do sexo masculino, porque, infelizmente, biologicamente, as mulheres acabam tendo filhos e sendo mães”, diz Julie. “Só agora que está começando um movimento aonde os pais podem ter mais tempo de folga e tirar licença paternidade, para que possam realmente dividir as responsabilidades.”

Gloria se lembra dos desafios de administrar o Sacred Reich e de estar na estrada quando ela era mãe solteira de cinco filhos. “No começo, minha filha Christina cuidava das crianças e administrava o escritório em casa. E então eu comecei a procurar babás, nessa busca interminável das mães que trabalham.”

“Acredito firmemente que você pode fazer o que quiser, e talvez isso exija um extremo estresse físico e mental, mas às vezes as coisas não são fáceis. Eu nasci de pais trabalhadores. Minha mãe esteve em um campo de concentração, e ela me ensinou muito sobre o que é importante. ”

Se existe um linha comum que surge de todas as mulheres com quem conversamos é a determinação. Em 2018, há uma maior conscientização coletiva das estruturas de poder em funcionamento na sociedade, teoricamente tornando mais fácil denunciar o sexismo na indústria da música.

A mudança leva tempo, mas está acontecendo, e Julie e Maria apontam para a nova empolgante leva de bandas surgindo, como Code Orange e Venom Prison. Ainda pode levar algum trabalho extra para ter sucesso, mas pode ser feito.

“Continue”, diz Wendy Dio. Especialmente para as artistas mulheres. Você faz o que acredita. Não mude a si mesma. E se você for boa o suficiente, vai conseguir. ”

“Continue subindo e vai matando as moscas no seu caminho”, acrescenta Maria. “É um caminho difícil, mas vale a pena. Não apenas para criar seu próprio caminho, mas para abrir uma estrada para as pessoas que virão depois. ”

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