Você sabe alguma coisa dessa mina que vem sempre antes de mim? Me conta, vai? Ela está com problemas no amor? Ela tem banda? É metaleira da pesada? Ela tem um crucifixo invertido como o meu? Você sente alguma atração por ela?”
Por Rafael Masini
Sala de espera. Adelaide está sentada em seu posto de sempre – mesa e cadeira simples, típicas de salas de espera. Sobre a mesa, várias pastas e papéis empilhados, mais objetos comuns de secretárias, canetas, lápis, prancheta, pregador, fita adesiva, clipes, uma agenda, um abajur, um telefone, um pequeno radinho à pilha e afins. Tudo impecavelmente organizado. Ao lado da mesa, um cesto de lixo. Ao lado do lixo um filtro de água. A uma distância considerável da mesa, uma única cadeira serve àqueles que esperam a hora da consulta. Ao lado, uma baixa mesinha com revistas antigas e um pote com balas de hortelã. Há um mancebo com um único casaco pendurado. Rita entra por trás de Adelaide. Adelaide ouve Rita entrando, mas não se vira. Adelaide escreve. Apenas quando Rita se senta na cadeira, Adelaide a olha e a cumprimenta com os olhos.
Rita: Nem fala nada, Adelaide. Hoje não estou com paciência. Toda vez é o mesmo papinho, “Boa tarde Rita, tudo bem?” Tudo bem. As pessoas que estão bem por acaso precisam de psicólogos? Eu não devo estar me sentindo um tanto sozinha para ter que pagar pra falar com alguém? E o fato de eu chegar dez minutos antes da minha consulta não te passa a ideia de que eu estou sem nada pra fazer? É sempre a mesma coisa. Eu tenho que ficar aqui, esperando sair daquela salinha ali, aquela outra louca que só usa jeans, camisa preta de banda metal e que nunca me cumprimenta. Você acha normal alguém passar por isso pelo menos duas vezes por semana? Eu sei que só vem aqui duas vezes os pacientes mais perturbados. O normal é uma vez por semana.
Sabe, Adelaide, uma das coisas que a Dra. Marta me manda fazer é escrever. Ela diz que escrever faz bem pra cabeça, porque ajuda a organizar os pensamentos. Daí eu comecei a escrever, mas eu nunca mostro para ela. Ela ia ficar julgando minhas palavras. A questão é que de uns tempos pra cá eu não estou mais conseguindo escrever. Eu comprei um caderno só pra escrever as músicas da minha vida, as músicas que eu componho na guitarra emprestada do Gui. Sabia que o caderno está em branco? Pois é, que loucura não é mesmo?
Coração aéreo do caralho! É o teu mesmo. Pra quem bate o teu coração, Adelaide? Em quem você pensa quando escuta músicas lentas ou quando se masturba? Pra quem você serve o uísque antes de tirar a roupa? Ninguém Soares né? Vai ver que você é do tipo de mulher que só vai se apaixonar quando for velhinha, sabe tipo filme cult francês? A velha amargurada porque nunca teve um amor na vida, de repente conhece um velho alma gêmea escuta um último disco e trepa até morrer. Se você quiser eu posso te ajudar. Posso escrever a tua vida em um caderno de caligrafia, com ilustrações bíblicas, e uma capa profana. Posso gravar os teus poemas solitários em um disco de vinil. Você pode chama-lo de o último disco de uma alma nua.
Eu já tirei fotos nua, sabia? Por que você não experimenta? Toma um banho, se depila, passa um creme e depois se fotografa. Um dia eu trago as minhas fotos pra você ver. Você vai poder observar as minhas curvas, meus relevos. Vai poder sentir inveja do meu shape. Pede nas suas orações, Adelaide, pra Jesus te dar um shape assim que nem o meu na tua próxima encarnação. Jesus…
Tá vendo esse crucifixo aqui? Ta de ponta cabeça. Foi a minha avó quem me deu na primeira comunhão. Rezava com ele apertado no meu peito. Mas um dia meu cachorro ficou doente, e eu pedi pra Deus, ou pro crucifixo, sei lá, curar meu cachorro. Sabe o que aconteceu, Adelaide? Ele morreu. Foi então que eu virei o crucifixo de cabeça para baixo. Pra pôr o menino Jesus de castigo por roubar o meu au-au. Minha avó ficou puta! Disse uma pá de groselha pra mim e pra minha mãe. Ficou puta. Foda-se. Agora ela já está no paraíso junto com o meu cachorro Ozzy.
E eu sem ideia pra música. Não sei se é a guitarra do Gui, ou se é esse momento da minha vida…
“Tá vendo esse crucifixo aqui? Ta de ponta cabeça. Foi a minha avó quem me deu na primeira comunhão.”
Mentiras estúpidas! Ele falou no meu ouvido, me acariciou os cabelos, beijou minha nuca. Ele me pegou pela mão e fomos para o parque. Ele sempre vinha com a mão boba e eu dava um tapinha junto com um sorriso. Um verdadeiro jogo de para senão eu gamo… Para senão eu dou. O parque tava quase sempre vazio, apenas alguns inúteis dando comida pros patos. Aposto que você adora alimentar os patos, Adelaide, é a tua cara de pato garça. Isso faz tanto tempo, eu nem lembro mais o nome dele. Não sei por que lembrei disso agora. Que cara estranho. E você, Adelaide?
Ah, pra você é muito fácil, não é Adelaide? Fica aí, em silêncio, enquanto a idiota da Rita fala sem parar. Fica o dia inteiro aí desenhando nessa sua agendinha, aposto que Dra. Marta só te dá função inútil. Não quero nem imaginar o tipo de baixaria que essa mulher te manda fazer. E você faz tudinho, não é Adelaide? Até onde você vai por esse empreguinho, Adelaide? Você tá pagando alguma promessa? Fazendo greve de silêncio? Sabe, quando eu preciso de alguma coisa faço greve de sexo, isso sim funciona. Ninguém vive sem sexo, Adelaide. Agora, o seu silêncio… Quem faz questão de ouvir você falar? Tem alguém? Você é casada? Ah, me desculpa, está ficando muito pessoal! Pelo menos com seu marido você fala? Ah já entendi, ele gosta do tipo quietinha. Trepa em silêncio, com essa carinha de santa e ele adora. Saquei tudo. É assim que você domina os homens, Adelaide? Ah, até que enfim um sorriso!
Você sabe alguma coisa dessa mina que vem sempre antes de mim? Ah, sabe sim! Me conta, vai? Ela está com problemas no amor? No trabalho? Ela tem banda? É metaleira da pesada? Ela tem um crucifixo invertido como o meu? Vocês conversam antes da consulta dela, que nem a gente? Você sente alguma atração por ela? Seus desejos femininos se atrapalham diante daquela fêmea, Adelaide? Ou isso é só comigo? Estou brincando, Adelaide! Me fala sobre ela, vai. Tenho certeza que você deve estar pensando que isso é antiético. Bobinha. Você acha que eu não sei que Dra. Marta conta as coisas que eu falo pra ela, pra você ou pra outras pessoas? Claro que conta, conta pro supervisor, conta pro marido, pros mais próximos, até pros vizinhos. A Dra. Marta só deve falar dessas coisas. Velha sem assunto. Velha fubá da porra. E além do mais, ela pode falar, eu não estou nem aí, porque eles não me conhecem.
Mas um dia eles podem vir a me conhecer. O mundo é bem pequeno. Imagina conhecer alguém que sabe dos meus segredos, mesmo sem eu ter contado. E os seus segredos, Adelaide? Quem sabe? É claro que você vai dizer que…
“A velha amargurada porque nunca teve um amor na vida, de repente conhece um velho alma gêmea escuta um último disco e trepa até morrer.”
(Abre-se a porta do consultório e sai uma linda mulher chorando, ela veste calça jeans camiseta preta do Accept e chinelo. A psicóloga Marta grita de dentro do consultório.)
Voz de Marta: Manda a próxima, Adelaide!
Rita: Pode deixar, Adelaide, eu conheço o caminho. Até que esses 10 minutos voaram. Obrigada pela companhia, fica fria que o teu segredo eu não conto. Estou entrando. Próxima parada… O divã.