Texto por: Felipe Machado, guitarrista do Viper

O resto é silêncio.

O Andre morreu.

Há muitas situações em que as palavras nos fogem. Cenários que provocam um silêncio nebuloso em que não conseguimos verbalizar o que pensamos ou sequer demonstrar os sentimentos que afligem nossos corações.

A morte do Andre certamente não é um deles.

O Andre morreu, mas não há nada de silencioso nisso. Pelo contrário. Há uma avalanche de pensamentos que invadem minha cabeça de forma desordenada, não-cronológica, caótica, até. Aqui as palavras não fogem; o que escapa do controle é a minha capacidade de escolher quais serão as palavras mais adequadas para descrever quem ele foi. Não apenas para mim, mas para muita gente da minha, e de outras gerações. A sua morte dentro de um contexto.

Ainda me lembro como se fosse hoje do Andre criança, quando o conheci. Era 1983, acho. Eu, Nando, Pit e Yves morávamos no mesmo prédio, na Rua Dr. Veiga Filho, em Higienópolis. Desde muito novos já éramos uma turma de crianças interessadas em música, e até já tocávamos em uma banda de brincadeira chamada Rock Migration. Foi aí que se mudou para o prédio ao lado um garoto quieto e bonzinho, que escondia a timidez atrás dos óculos de lentes grossas.

O primeiro a ficar amigo dele foi o Yves, que logo o convidou para jogar bola com a gente. Jogar bola é a melhor forma de trazer um garoto novo para dentro de uma turma já estabelecida, acho. No início, Andre era o ‘intruso’, o menino do prédio ao lado que queria entrar para a turma de qualquer jeito. Mas logo descobrimos que, além do futebol, compartilhávamos outro amor. A música.

Andre tocava piano muito bem, mas ainda não cantava. Aos poucos, a turma do bairro ganhou outros garotos que também se interessavam por música, e várias bandas se formaram ao redor do núcleo principal, que já era o VIPER. Ao descobrir que queríamos ser o Iron Maiden, lá pelo final de 1984, decidimos que o Pit deveria tocar apenas baixo e que a banda deveria ter um vocalista principal. Andre já dava indícios de que queria cantar, pois costumava ir com o pai até o centro de São Paulo para comprar parte de seu “novo visual”, braceletes, camisas de bandas, cintos de rebites, calças de couro.

Em 3 de janeiro de 1985, na festa de aniversário de outro vizinho, o guitarrista Marcos Kleine, convidamos Andre Matos para se tornar vocalista do VIPER. Ele aceitou na hora. Comemoramos a entrada dele enchendo a cara com Guaraná e um banquete de coxinhas servido pela Dona Vilma, mãe do Marquinhos.

O que veio depois aconteceu tão rápido que às vezes esqueço que tenho 48 anos e que isso começou há 34. No primeiro show, no Lira Paulistana, éramos uma banda de garotos com idades ‘em escadinha’: Andre tinha 13; eu, 14; Yves, 15; Pit, 16. Se alguém me convidar hoje para ver um show de garotos dessa idade, vou pensar que é alguma piada. E, por mais estranho que isso possa parecer, éramos uma banda que se levava a sério… Cantávamos em inglês porque queríamos tocar no mundo inteiro – olha só que bobagem. Cinco adolescentes cantando heavy metal em inglês no Brasil, qual é a chance de isso levar a algum lugar?

Mas levou. O VIPER ganhou os palcos do Brasil, se tornou uma banda internacional. Depois o Andre saiu, formou outras bandas. Virou um ícone global. Um dos melhores vocalistas da história. São tantas histórias que fica difícil escolher quais contar.

O Andre morreu.

A simples lembrança de algumas dessas memórias provoca no meu rosto uma expressão contraditória, que mistura lágrimas e gargalhadas ao mesmo tempo. Um rosto não foi feito para expressar sentimentos antagônicos, talvez seja por isso que dói tanto. Ou pode ser uma lição maior, uma aula que a vida nos ensina: que as grandes ausências são aquelas que obrigam nossos rostos a sorrir, mesmo quando nossos corações insistem em chorar.

É o que acontece quando lembro das inúmeras vezes que o Andre tropeçava nos cabos das nossas guitarras no palco porque não enxergava um palmo diante do nariz quando tirava os óculos. Ou quando lembro que ele me chamava de ‘Pip’ para me ridicularizar (com razão) desde que eu escrevi meu nome em inglês na contracapa do ‘Soldiers of Sunrise’ (“Philip Machado”). Ou quando lembro de uma história bizarra do nosso primeiro show, quando ele fez um discurso político (aos 13) e dedicou uma música do Venom (‘Countness Bathory’) à morte do Tancredo Neves. O problema é que tínhamos entendido a letra errado, e achado que ela falava sobre “líderes mundiais”, quando na verdade a letra falava sobre uma condessa que tomava banho com o sangue de virgens.

Um dos episódios mais conhecidos é o da “tocha”. Lembro que o Andre quase colocava fogo nos lugares por onde a gente tocava porque insistia em entrar no palco com uma tocha de fogo ao som da música ‘The Whipper’. Supostamente, a tocha era para ser um efeito especial épico, mas na verdade aquilo era nada mais que um cabo de vassoura tosco com um pano de chão embebido em querosene amarrado. Mas qual o problema? Nada mais normal para um garoto de treze anos do que entrar em um palco de uma escola carregando uma tocha feita com pano de chão e querosene.

Quero aproveitar para lembrar uma das minhas histórias favoritas, acho que nunca contei a ninguém. Mais por vergonha do que pela importância da história. Quando eu tinha catorze anos, tive uma namorada na escola. Quando completei dois meses de namoro, resolvi homenageá-la com uma pichação. Sim, na época ainda não havia grafite, a gente pegava um spray e escrevia alguma coisa no muro. O Andre tinha um spray, e fomos juntos de madrugada pixar o muro da escola. Eu estava extremamente nervoso, era algo totalmente fora da lei e “errado”. Ao chegar lá, escrevi a mensagem: “feliz 2 semanas de namoro – Felipe”.

Sim, eu fui ingênuo a ponto de assinar uma pichação no muro da minha própria escola. Saímos correndo e chegamos em casa. Daí o Andre perguntou: “que bom que deu tudo certo. Mas pensei que você estava fazendo dois meses de namoro, não duas semanas”. O quê? Eu escrevi errado! Era para ser 2 meses, mas eu estava tão nervoso que escrevi ‘2 semanas’.
Corremos de volta ao colégio para tentar corrigir a besteira. Foi daí que o Andre teve uma ideia genial: ele pegou o ‘2’ e transformou em ‘8’ com o spray. “Pronto, agora você está comemorando oito semanas, ou seja, dois meses”. Ele me salvou. Como não amar um cara desses?

O Andre morreu.

A morte é irreversível. Uma coisa tão óbvia que a gente esquece como isso é uma verdade absoluta. O Andre era um daqueles caras que não deviam morrer, podiam simplesmente viver para sempre. Na verdade, ele vai viver para sempre nas canções que escreveu e que cantou, mas que infelizmente vão ficar restritas ao fatídico limite de 8 de junho de 2019.
Demorei para escrever sobre a morte dele não por preguiça ou procrastinação, mas simplesmente porque eu não tinha condições de pensar racionalmente sobre o assunto. Era muita emoção – e ainda é. Mas acho que devia isso a ele, pelo menos para tentar entender por que sua morte abalou tanto sua família, amigos e fãs. No meu caso, assim como em relação às outras bandas pelas quais ele passou e brilhou, há algo mais. Mas o quê?

É uma analogia comum ouvir dizer que uma banda é uma família, mas acho que é muito diferente. Uma família, por exemplo, não se escolhe. Você simplesmente nasce em meio a um grupo de pessoas e pronto: eles são sua família. A maioria, você ama. Mas mesmo entre pessoas do mesmo sangue há aqueles que amamos mais do que os outros.

Uma banda é uma entidade formada por pessoas que se escolheram. Entre todos os amigos ao seu redor, os integrantes da banda escolheram aquelas pessoas para trilhar o mesmo caminho. Você confia que aquele grupo é o melhor do mundo, o mais talentoso, aquele que vai ajudar você a fazer sucesso. Você quer passar a vida inteira junto com aqueles caras, viajando, tocando, se divertindo. E quando você forma esse grupo ainda criança, acredito que há uma força maior ainda, até porque os laços de caráter e personalidade estão sendo construídos em conjunto. A confiança que tínhamos e sempre mantivemos uns nos outros nunca foi abalada, porque isso seria o mesmo que abalar a crença em nós mesmos. Era como se você pudesse escolher seus irmãos.

Por mais que o Andre fizesse parte de outras bandas, para mim ele sempre vai ser um membro do VIPER. Não é porque o VIPER era melhor que as outras, longe disso. Mas é porque sempre que eu penso nele eu trago todo o nosso passado junto, todas as nossas histórias, vitórias e derrotas. Nossas brigas, discussões, mas também os olhares que a gente trocava quando tudo dava certo e nada precisava ser dito.

Por isso, perder um integrante da banda nessas condições cria um desequilíbrio no universo, como se um satélite que estivesse em uma determinada órbita há milênios simplesmente mudasse de rota sem explicação. O Andre não estar mais entre a gente não faz sentido, é uma verdade simplesmente errada. Somos frações da mesma banda, por isso perder um dos integrantes é perder um pouco da própria vida. É como se uma parte de nós morresse, um corpo que perde um braço. Dá para seguir em frente? Dá. Mas algo que fazia parte de nós ficou para trás.

O Andre morreu.

Os fãs… e os fãs? Que fãs incríveis ele tinha – e tem! Que pessoas do bem, quanto carinho e respeito… Ele mereceu todo o sucesso que teve em vida. Fico imaginando a dor que cada um dos fãs está sentindo nesse momento. De certa maneira, perder um ídolo também é uma maneira de ficar órfão. Porque perdemos uma referência de vida, uma luz para a qual olhamos quando não sabemos direito onde estamos ou para onde estamos indo. Para muita gente, o Andre era um farol.

Tive uma consciência maior do amor que os fãs tinham pelo Andre durante a turnê de volta do VIPER, de 2012 a 2014. As pessoas queriam vê-lo e ouvi-lo no show, sim, mas também queriam encontrá-lo pessoalmente. Conhecê-lo, tirar uma foto ao seu lado, uma imagem que seria compartilhada na internet ou exibida com orgulho nos dias seguintes para todos os amigos.

Os fãs ficavam realmente emocionados ao conhecer o Andre, e ele retribuía tratando todos com a maior naturalidade do mundo. Era um cara tão normal que até deixava os outros desconcertados, sentindo como se fosse errado tratá-lo daquela forma tão exagerada. Acho que, no fundo, ele não se sentia muito confortável sendo famoso, talvez achasse que a fama era um efeito colateral da sua arte. Que pena, meu Deus.

O Andre morreu.

Desnecessário falar da sua voz. Do seu carisma no palco. Do seu talento ao piano. Era simplesmente um grande artista, ainda mais nessa época em que os ídolos são ocos e os talentos, descartáveis. Andre era um artista de verdade, alguém para quem a vida e a arte eram dois elementos inseparáveis. Engraçado que eu olhava para ele durante o show e pensava que o cara ali do meu lado era “apenas o Andre, meu amigo de infância”. Mas aos poucos compreendi que ele não era só isso. Quando compreendi, passei a respeitá-lo ainda mais.

Conversávamos como amigos de infância, mas no fundo ele já era outra coisa. Ele já era o Andre Matos, mesmo quando quem estava diante de mim era apenas o Andre. Dá para entender? Acho que ele se tornou maior até mesmo do que a sua imagem no espelho. Deve ser difícil para qualquer pessoa entender essa dinâmica. Para ele também era, tenho certeza. Ser o Andre e o Andre Matos ao mesmo tempo devia ser algo extremamente complexo, duro, desgastante.

O Andre morreu.

As histórias seriam infinitas porque o poder intrínseco da memória é infinito. Mas refletir sobre sua vida é uma maneira de fazer com que ele viva mais um pouco, pelo menos mais um pouquinho. Nem que seja o tempo finito de um acorde de piano.

Toda história tem começo, meio e fim, mesmo quando o fim parece ter chegado antes da história acabar. Na música ‘Moonlight’, versão para ‘Sonata ao Luar’, de Beethoven, Andre escreveu a frase: “I am alive / Just by the light of your eyes”. Se eu tivesse um único desejo nesse momento, seria que o mundo inteiro abrisse os olhos para que o Andre voltasse a viver.

Logo após o anúncio da sua morte, uma amiga me escreveu: “Não pensa na morte dele, pensa na história e no legado. A maioria das pessoas não deixa nada. Ele deixou”.
E como deixou.

Vai em frente, maestro. Você pode não estar mais entre nós como um gênio da música, mas ganhou um merecido lugar no panteão das lendas do rock. Isso não é pouca coisa. No futuro, as gerações vão olhar para trás e descobrir quem foi Andre Matos. E eu, vou olhar para trás e lembrar com orgulho que, mais do que um gigantesco artista, ele foi meu grande amigo.

O resto é silêncio.

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