Sim: este review está atrasado. Isso tem uma razão: esse texto é sobre o primeiro evento do ano voltado ao público gaúcho em cobertura aqui pelo site e será bem diferentão. Lacuna Coil voltou a Porto Alegre depois de seis anos (em 2017 a banda não passou por aqui), apresentando um disco de inéditas à surpreendentemente numerosa base de fãs. Afinal, estamos falando de uma banda que teve algum brilho nos anos de glória do sempre nostálgico gothic metal, antes dele ter sido triturado, engolido e regurgitado pelo mainstream há quase duas décadas.

Naquela época, a presença da vocalista Cristina Scabbia chamava atenção ao dividir holofotes com Angela Gossow (e a rebelião feminista a que ela se propôs no metal mais extremo), Vibeke Stene, que a frente do Tristania serviu de avatar ao culto da diva gótica norueguesa frágil e ambígua, e também com uma Tarja Turunen em vias de se tornar a metaleira mais famosa do mundo. Era um time complexo, cheio de diferenças, e os tempos também eram outros. Apesar de dividirem capas de revistas internacionais e nacionais (claramente eu tenho as minhas), a figura de Scabbia sempre foi a mais discreta – assim como a música do Lacuna Coil. Hoje, quase 20 anos depois desse passado memorável, a banda apenas impressiona por manter-se na ativa, acreditando em um formato ainda obscuro, mas certamente domesticado pela indústria, pela internet e pelo tempo.

Eu poderia ser breve e dizer o óbvio: primeiro show de cinco datas no Brasil, divulgando o mais recente trabalho, Black Anima, do qual tocaram cinco faixas. Trouxeram consigo a banda americana Uncured, cujos jovens integrantes abriram a noite com um metal super moderno, cheio de referências que transitam entre Avenged Sevenfold, Death e principalmente de bandas de technical death metal. O peso, a velocidade, o desejo de mostrar suas habilidades e o repertório agradável pegaram o público do Bar Opinião de surpresa. Um excelente começo. O Lacuna Coil passou por canções de todos os álbuns, e ainda um cover de “Enjoy the Silence”. Os fãs pareciam satisfeitos, mas não muito mais que isso.

Faria alguma diferença na vida da Cristina Scabbia um review ruim? Que alguém, dentre milhares de ingressos vendidos ao longo de uma agenda cheia, no primeiro show de sua atual turnê em território nacional, na impopular Porto Alegre – embora rota mais que frequente de artistas em visita a nosso país – se daria ao trabalho de se importar, ir lá e apontar os erros? Como a produtora lidaria? De que fãs estamos falando?

Via de regra, reviews de bandas de metal, especialmente gringas, são positivos, e isso se dá por motivos bastante plausíveis: além de redatores entusiastas, no palco geralmente temos músicos sérios, trabalhando duro, mostrando criatividade, competência e profissionalismo, noite após noite por anos, aperfeiçoando, entretendo, alimentando massas inteiras de algo que elas reservam um espaço considerável em suas vidas apenas para parar e contemplar, muitas vezes sozinhas. E isso não foi diferente no caso do Lacuna. O que foi estranho durante a longa apresentação do quinteto é que os presentes (fãs?) não pareciam muito mais do que ‘meramente’ entretidos. Chamar as canções pelo nome não parecia remeter ninguém a nada muito específico.

E não ajudava em nada a intenção reticente de 3 integrantes de corpse paint e macacão ‘Slipknot’ (me refiro ao power trio instrumental que acompanha os vocalistas do Lacuna), entregando uma performance limpa e bem iluminada, dócil, vagamente empolgada e executando uma leva bastante repetitiva de “grooves de uma nota só”, e à frente de todos um vocalista (Andrea Ferro) perambulando sem rumo, com gestual ou vocal que nem agregaram beleza visual, nem musical, e nem inspiraram confiança.

Não que as pessoas não possam ser domesticadas. Que todos aqueles que formaram um background black metal (pra pegar um exemplo extremo), o qual sustentou pilares estéticos de gêneros ‘góticos’ e ‘sinfônicos’, hoje sejam pais de família, evitem truculência gratuita e até venham a assumir o caráter retórico de suas blasfêmias, isso é perfeitamente aceitável: amadurecer ainda é um direito de todos. Mas a meu ver, subir ao palco prometendo metal e dar ao público um job disfarçado de “música pesada” (ênfase nas aspas), com um excesso de riffs idênticos e uma identidade um tanto difusa por trás de um rótulo de ‘metal alternativo’…

Sim, é proposital o uso do adjetivo reticente, e também das reticências até aqui empregadas – elas descrevem a sensação do momento, diante do palco. Compreenda: a banda estava fazendo o que sabe fazer, e estava fazendo com competência (embora, é verdade, não fizessem jus à produção do disco). De modo que o problema não parecia ser na banda, mas na música. Tendo eu, na juvenília, nutrido certo interesse por bandas como After Forever, Nightwish e Within Temptation, além de ter dedicado boas doses de afeto aos trabalhos clássicos do Tristania e do Therion, bandas que não-raro assolam minha vida em confusos lapsos de simpática nostalgia, me frustrei por não encontrar nada desse imaginário no show do Lacuna Coil. Pior do que isso foi me deparar com aquilo que, por muitas vezes, lembrava os hits do Evanescence, banda que ajudou a romper com o charme ultrarromântico dos gótico-metaleiros.

Por favor compreenda: eu sei meu lugar, e é guardado à leitora/ao leitor o direito de discordar de mim, de comentar que esse foi o melhor show da sua vida, que os músicos nunca estiveram tão bem, que a música nunca fora tão relevante, que os reviews de Black Anima, album divulgado nesta tour, foram todos muito bons. Contudo, a meu ver, o Lacuna Coil ofereceu menos destaques (ensaio, lindos backdrops, e a reconfortante presença de sua vocalista, que mesmo com tudo que foi dito ainda desfruta do status de ‘metal diva’ moderna à frente de seus diversos admiradores) do que a banda de abertura, e aqui entramos no plot twist da noite (e, como se vêm, também desta resenha).

Quem está acompanhando o Lacuna Coil nessa turnê é o Uncured, uma banda bastante mais interessante que os donos da festa. Mais interessante sim, porque ao menos no dia 11 de fevereiro em Porto Alegre, eles deram mais o que falar. A história do bom concerto do Uncured começa com um vocalista e guitarrista de 19 anos e um guitarrista de 21 que também canta: dois jovens irmãos, bombados demais pra idade, e com um desempenho muito impressionante (o que aqui no sul chamamos de piás de merda tocando pra caralho).

Se o som tem grande influência de metalcore com melodias limpas e pegajosas, dando ares de uma angústia teen cada vez mais caricata e americanizada, essa observação cínica e maldosa se esvai no segundo que lembramos da idade dos músicos citados: no ápice da adolescência enquanto excursionam com grandes nomes do metal mundial desde 2017, eles possivelmente estão no ápice dos mais angustiantes dilemas, tocando e cantando sobre isso na idade certa e, pasme, elaborando isso tudo em guitarras com muito mais que seis cordas, oscilando entre vocais americanidol e thrash/death podrera clássico (esses realizados pelo segundo guitarrista, e pelo menos ao vivo soam assim!), e o mais fabuloso de tudo: destilando, com todas as letras e ainda em tom amistoso, um technical death metal afiado, virtuoso e que parece vir de uma fonte inesgotável de energia (e aqui a idade mostra-se relevante mais uma vez). 

Durante o show, foi impossível não lembrar de Alexi Laiho, que lançou Something Wild junto do Children Of Bodom antes dos 20, mas que fique claro que o comparativo acaba aqui: eles tocam muito, mas sua ‘intenção’ ainda é um pouco vaga em relação à coesão das primeiras obras dos finlandeses. Os quatro caras vêm de New Jersey, e quando os encontrei ao final do show, eles não só se reconheceram em minha sagaz associação aos finlandeses, como também me disseram que excursionaram com eles. Ali, comecei a ficar realmente instigado: quem eram essas crianças anônimas com todo aquele comprometimento? A banda claramente veio pra deixar uma impressão forte, tocando muito rápido, explorando seus instrumentos com fluência e puxando muito (quase forçando) no carisma. O vocalista não poupou comunicações efetivas e engajadoras com a plateia – a qual conquistava música a música –, sorrisos, e além de tudo, tocou guitarra melhor do que muitos caras que ele ainda nem teve tempo suficiente pra ouvir. 

A banda não deixou o palco super aclamada, mas pra uma banda de abertura, seu merchandise parecia estar indo muito bem. Ainda em conversa com os caras, eles disseram que a banda é o trabalho deles, que se dedicam exclusivamente, excursionam e vivem para isso, e sim, consideram ter o melhor emprego do mundo (palavras deles). Era intrigante observar o quarteto atrás na baia dos técnicos de som, observando o show do Lacuna Coil, não apenas como quem tem algo a aprender com os músicos mais velhos e mais experientes, mas também como quem tem algo a lhes dizer, sobre desafiar a atenção do público, as próprias limitações técnicas e criativas, e sobretudo a necessidade de dar, pela arte, uma resposta à altura dos tempos atuais. Isso porque o show do Lacuna é tão “maduro” e “profissional” que seus riffs mansamente distorcidos, grooves sem movimento e seus guturais pseudohistrionicos num mar de normalidade parecem deixar tudo meio… sem sentido.

Em resumo, exceto para fãs incondicionais do Lacuna Coil, talvez tenha sido um concerto um tanto genérico, mas para o público em geral, ao menos foi dada a oportunidade de se viver algo realmente fora do comum: jovens desconhecidos dando todo seu vigor e inteligência e impressionando à primeira vista. Uma noite marcada por dividir no palco do Opinião o “emprego dos sonhos” de uns e “apenas um emprego” de outros. O lado bom é que segue difícil fazer um bom show de metal, e que nem toda a experiência do mundo garantem que show fraco passe despercebido.

Veja abaixo as fotos exclusivas de Daniela Cony.